Em seu mais recente livro, Arrancados da Terra (Companhia das Letras, 2021), o escritor cearense Lira Neto recuou mais de 300 anos para trazer do passado as perguntas incômodas que precisamos responder no presente.
:: Receba notícias de Pernambuco no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Depois de contar as histórias de Jose de Alencar, Maysa, Padre Cícero, Castelo Branco e Getúlio Vargas, Lira optou desta vez por uma biografia coletiva dos judeus, cristãos novos, perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica e que migraram para Pernambuco sob o domínio holandês no século XVII em busca de uma vida nova.
Com a Restauração portuguesa, muitos retornaram à Europa, outros tantos se embrenharam pelos sertões. Mas a história mais instigante dessa fuga está num navio com 23 judeus que rumou para o Atlântico Norte e, em 1654, teria chegado à Ilha de Manhattan.
A história é controversa. Confirmada e negada por diferentes historiadores. Lira não bate o martelo sobre o assunto. Apresenta várias considerações ao leitor. “À luz da documentação que se conhece essas dúvidas permanecem irrespondíveis. Esse componente de mistério torna o assunto ainda mais saboroso”.
O escritor foi buscar em personagens anônimos – nada de reis e togados – os fios que constroem essa trama. O ponto de partida é Gaspar Rodrigues Nunes, dono de uma pequena loja de pregos em Lisboa, perseguido e torturado pela Inquisição, sua esposa, que delata o próprio marido, e o filho Menasseh, refugiado, criado e crescido na Holanda.
Em entrevista para a Marco Zero Conteúdo, Lira conta as motivações para escrever o livro e o quanto o preconceito e a intolerância que marcaram a perseguição aos judeus na Europa seiscentista nos remetem ao Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro. “É incrível que uma história passada lá no século XVII ainda tem lições e recados a nos dar em pleno século XXI”.
O que te motivou a escrever sobre os judeus que partiram de Portugal fugidos da Inquisição e vieram parar em Pernambuco sob o domínio holandês? Sei que você tinha o interesse em escrever uma biografia sobre Maurício de Nassau.
Antes mesmo de publicar meus outros livros, eu tinha a ideia de biografar Nassau. Você como pernambucano sabe melhor do que eu que ele é um personagem fascinante. No começo dos anos 2000, eu tinha esse projeto e comecei a juntar material, fui lendo, mergulhando na bibliografia, mas, a partir do momento em que eu comecei a ler e pesquisar, um outro tema foi me chamando a atenção e me arrebatou, acabou por me fazer olhar não mais para Nassau, mas para esse conjunto de pessoas. Gonçalves Mello e a obra do mestre Evaldo Cabral foram referenciais que me levaram a este tema dos judeus, dos cristãos novos que vieram da Holanda para o Brasil. Enquanto eu escrevia outros livros, continuava a ler, a juntar bibliografia, a mergulhar nesse assunto até o momento em que eu vim para Portugal e pensei que era hora de levar isso mais a sério, com mais rigor e vigor e aí tá esse Arrancados da Terra.
No livro você aborda a viagem de 23 judeus que saíram do Recife em direção ao Atlântico Norte e sobre os quais se construiu uma narrativa de que foram os fundadores de Nova Iorque.
Existe uma imprecisão histórica quando se afirma que esses judeus saídos do Recife teriam fundado Nova Iorque, quando eles chegam na ilha de Manhattan já havia ali um empreendimento colonial em curso, que era a Nova Amsterdam. Eles se uniram a um processo de colonização já preexistente. Isso é um ponto. Outro ponto que eu discuto no pós-escrito do livro é toda a querela historiográfica desse assunto. Mostro como foi se construindo essa ideia e esse fato de que esses português seriam os mesmos que saíram do Recife. É impossível cravar isso como verdade absoluta como querem alguns e também impossível descartar o episódio como se fosse não verdadeiro, porque entre um extremo e outro há uma série de questões que precisam ser discutidas e refletidas. A gente tem que entender que os mitos, as mitologias de origem, não são apenas fabulações, invenções, ilusões, ou, em suma, mentiras. São também tradições, são modelos de interpretação, formas de compreensão da realidade. É preciso não descartar o mito puro e simplesmente, mas procurar compreender as origens, seus significados, as motivações dessa mitologia.
Nesse caso você preferiu trabalhar com a dúvida.
Porque achei mais honesto do ponto de vista intelectual oferecer ao leitor não uma verdade absoluta, não uma resposta definitiva. Após apresentar a narrativa hegemônica em torno do episódio, inclusive chancelada pelo Barack Obama quando presidente da República, que fez uma célebre declaração citando textualmente os judeus recifenses que teriam chegado a Manhattan, eu preferi utilizar todos os cuidados que qualquer pesquisador da história, qualquer jornalista, qualquer historiador deve ter, ou seja, ao invés de tentar responder todas as questões, se municiar da possibilidade de suscitar novas interrogações. Para mim o conhecimento não é feito de certezas prévias, o conhecimento é feito de pontos de interrogação, principalmente nos tempos que correm em que todos parecem esgrimir essas certezas prévias, verdades absolutas. Eu acho que pôr um pouco de questionamento, de relativizações, de dúvidas e interrogações é sempre mais saudável, muito mais positivo.
Não existem documentos que esclareçam o assunto?
Há autores que, baseados em certa documentação, afirmam peremptoriamente que teriam sido eles, inclusive, cotejando os nomes que constam nas atas da Congregação no Recife e os nomes dos passageiros que teriam desembarcado em Manhattan, mas nós sabemos que há muita homonímia entre os judeus, além disso os nomes não eram tais e quais estavam na lista, há diferença de grafias, alteração e mudança de sobrenomes. Os que se baseiam nessas listas estabelecem um pouco de boa vontade para que esse nomes sejam de fato encarados como coincidentes. Outros autores preferem dizer que tudo não passa de uma mitificação, no sentido da invenção, o que eu acho um pouco radical visto que alguns documentos mostram que o pastor protestante que saiu de Pernambuco estava no navio que chegou em Manhattan. À luz da documentação que se conhece essas dúvidas permanecem irrespondíveis. O conhecimento histórico é assim, feito de vestígios, de indícios, não é uma ciência exata que pode dizer que 1 mais 1 é igual a 2. Os documentos precisam ser lidos, interpretados, analisados e aí entra, logicamente, muito da carga da subjetividade de cada historiador, de cada investigador que se debruça sobre esses episódios. Esse componente de mistério, essa lacunas, essas reticências tornam o assunto ainda mais saboroso, ainda mais desafiador.
Como você avalia a perspectiva de que os holandeses eram mais civilizados do que os portugueses e que o destino do Nordeste e de Pernambuco teria sido outro sob o domínio dos holandeses?
Não tem colonizador mais bonzinho do que o outro. O colonialismo pressupõe a exploração de uma Colônia por uma Metrópole. E o período de Nassau, logicamente que trouxe uma série de avanços urbanos, científicos, para o Brasil holandês, para Pernambuco de forma específica. Mas essas iniciativas dele desagradavam bastante quem estava lá na Holanda, as autoridades holandesas, e até a Companhia das Índias Ocidentais que achavam que ele era um perdulário, que gastava muito dinheiro com obras desnecessárias e com uma corte bastante vasta e cara. O que a Companhia das Índias queria era explorar o açúcar, era levar a riqueza do açúcar para a Europa. O próprio Nassau deixou registrado que eles não abriam mão da escravatura como uma das bases do sistema econômico, desse sistema colonial, e o próprio Nassau e os representantes das autoridades holandesas no Brasil diziam que qualquer coisa fora disso era um falso escrúpulo, com as justificativas as mais diversas, inclusive, de ordem religiosa, de que trazê-los da África e leva-los para as plantações de cana no Brasil era uma forma de trazê-los à civilização e ao acolhimento da religião cristã. O que unia calvinistas protestantes e católicos. Quanto à essa idealização de que o Brasil seria outro se ficasse nas mãos do holandeses, basta a gente se perguntar qual foi a outra possessão holandesa que hoje é uma potência ou que não sofreu os mesmos horrores de todo o sistema colonial?
Um debate que se atualiza.
Sim, quando a gente discute exatamente na pauta do dia a importância de uma reflexão decolonial, esboçar alguma espécie de saudosismo em relação a qualquer projeto colonial, seja ele qual for, é um absurdo, sem sentido. Não compactuo, não comungo dessa ilusão de que o colonizador holandês era mais civilizado do que o colonizador português, ambos eram colonizadores. As bases do sistema colonial português foram as mesmas bases do sistema colonial holandês: o escravismo, o latifúndio e a monocultura. Não há diferença estrutural nenhuma entre os dois sistemas.
Você já disse que nesse livro, e nos outros que você escreveu, não se trata de remexer o passado pelo passado, que ele projeta perguntas para o tempo presente. Quais perguntas o Arrancados da Terra projeta para a atualidade?
O grande tema que está subjacente à narrativa dessa história é uma luta permanente contra o preconceito e a intolerância. Não é à toa que eu o dedico aos desterrados, aos retirantes, aos refugiados, aos proscritos, exilados, migrantes… O que atualiza os sinais dessa obra é a questão dos refugiados. Aqui na Europa, por exemplo, e aí no Brasil, os venezuelanos, os haitianos… Como é que a sociedade olha para essas pessoas pelo fato de elas serem diferentes, pelo fato de elas serem estrangeiras? Ela os vê como uma ameaça permanente e então há toda uma carga de xenofobia, toda uma carga de preconceito, de intolerância contra essas pessoas. O livro é atual a partir do momento em que o outro é sempre encarado com reserva, e sempre se constrói uma imagem satanizada desse outro. Por isso que eu acho que o Arrancados da Terra é um livro que tem algo a dizer para o tempo atual, para nós cidadãos do século XXI, e é incrível que uma história passada lá no século XVII ainda tem lições e recados a nos dar em pleno século XXI.
O fio condutor do seu livro é um homem comum. Como a vida de um anônimo pode servir de base para contar a história de uma época?
Uma coisa que é interessante é que eu precisei articular sempre esse jogo de escalas entre a macro e a micro história pela necessidade de buscar personagens arquetípicos, personagens cujas histórias servissem para iluminar aspectos mais gerais, mais coletivos. É o caso do português Gaspar Rodrigues. O primeiro personagem a aparecer no livro, cristão novo, que foi alvo de um processo religioso, inquisitorial, movido contra ele e a esposa e outros parentes próximos. Ele é um personagem arquetípico, modelar, na medida em que o caso dele serve para mostrar, por exemplo, os métodos de interrogatório da Inquisição que incluíam a tortura psicológica, a tortura física, as delações premiadas. Todo esse arcabouço jurídico nós herdamos muito deles e nos últimos tempos vimos esse tipo de prática ser novamente levada a cabo. O filho de Gaspar, Menasseh, que era já um judeu criado e crescido na Holanda, oferece uma linha de continuidade a essa narrativa que se desdobra sobre a questão dos refugiados ibéricos e que eu desenvolvo na segunda parte do livro.
Personagens anônimos.
Então, quanto mais anônimo fossem esses personagens mais me interessavam, porque seria fácil centrar a história nos poderosos, mas ai eu não daria conta exatamente dessa dor de ser arrancado da terra exatamente sem nenhuma reserva, sem nenhuma possibilidade de defesa e aí a ideia de fazer uma biografia coletiva porque é mais ou menos isso o que esse livro é, como foi o livro sobre uma história do samba, por mais que eu sempre diga também que uma biografia nunca é uma narrativa em torno de um único personagem, de um único indivíduo. Ao biografar alguém você está biografando toda uma época, na medida que ninguém existe à parte das circunstâncias do tempo e do espaço em que vive.
No jornalismo, muitas vezes, deixamos de lado os anônimos para contar as histórias a partir do ponto de vista das autoridades.
Um dos vícios do jornalismo é exatamente esse jornalismo declaratório baseado simplesmente na voz dos poderosos, das autoridades. Boa parte da historiografia é contada a partir desses vencedores, dos poderosos. Aquela velha prática historiográfica de que a história é feita pelos grandes homens. Na verdade, a história é feita pela sociedade, pelo homem comum. O desafio é tentar entender como se dá essa mão dupla entre as vontades individuais e particulares, anônimas, e os grandes motores estruturais da história, ou seja, tentar compatibilizar essas duas visões, que para mim não são necessariamente antagônicas, do macro e do micro na estrutura, da narrativa, da análise , da interpretação, da descrição. É um pouco isso o que eu tenho usado com uma certa constância. A ideia de que essa narrativa compreende a noção original do termo texto, do texto como tessitura, do texto como tecido, que cada fio que aparentemente não tem nenhum valor, não parece merecedor de qualquer atenção quando visto de forma isolada, é essencial para construir uma trama, uma trama maior e sub-tramas que se formam, que se acumulam e que se entrelaçam para formar uma trama maior, um painel maior e mais coeso e mais coerente quanto mais entrelaçado estiverem esses fios. Foi um pouco de tudo isso que me fez optar por essa biografia coletiva. Nenhum personagem sozinho daria conta de toda essa trajetória. Eu fui buscando personagens a cada instante temporal em que se passa o livro pra dar conta exatamente dessas conexões, dessas intersecções entre essas existências.
Como você escolhe os biografados?
Isso é sempre um trabalho que demanda alguma reflexão prévia, algum interesse prévio. Você tem interesse sobre uma época, sobre um personagem, sobre um período e escolhe. Eu sempre escolhi meus próprios biografados, a única vez que houve uma sugestão que eu acatei foi sobre a história do samba sugerida pelo meu editor Luiz Schwarcz. Minha primeira biografia coletiva. Não necessariamente eu escolho os personagens por gostar deles, muito pelo contrário, às vezes exatamente eu gosto de escrever sobre o vilão. No caso da biografia de Castelo Branco eu quis entender como pensava o primeiro ditador de plantão após o golpe militar e civil de 1964, entender suas motivações, entender como o homem que se dizia um legalista, que dizia que lugar de militar era no quartel e não na política, construiu sua chegada ao poder no golpe. No caso de Getúlio, é um personagem realmente incontornável na história do Brasil, que desperta até hoje paixões extremas, ódios e amores, é uma coisa parecida com Padre Cícero, nesse caso, que arrasta uma legião de fiéis, mas também um grande conjunto de detratores. Esses personagens que geraram controvérsia enquanto eram vivos e continuam a gerar interpretações as mais variadas depois da sua morte são personagens de saída que me interessam. Isso aí já é um critério na escolha de um biografado.
O que das histórias de Getúlio, Castelo e Padre Cícero, desse Brasil do passado, ajuda a explicar o Brasil do presente? Que elementos você encontrou no passado que explicam o Brasil sob o governo Bolsonaro?
A gente não estuda a história simplesmente para conhecer o passado. O passado pelo passado. Essas pesquisas, principalmente no caso de Getúlio, de Castelo Branco e de Padre Cícero servem para entender como nós chegamos até aqui. Quais foram os caminhos e os descaminhos. Como é que uma cultura autoritária que parece, infelizmente, inerente ao DNA dos detentores do poder no Brasil e, principalmente, como o Exército e as Forças Armadas sempre se arvoraram a essa condição de árbitros supremos da vida nacional, sempre dispostos a entrar em ação, sair dos bastidores e vir para o centro da cena sempre que consideram que a política não está resolvendo devidamente os conflitos e as crises. Isso tudo serve pra gente entender um pouco a fragilidade da nossa democracia, as circunstâncias que fizeram com que ao longo do século XX o Brasil tenha vivido tão pouco tempo sob o regime democrático pleno, como há uma vocação ditatorial, autoritária, nessas instâncias superiores de poder.
Arrancados da Terra também traz esses indícios.
Arrancados da Terra mostra que essa história é muito mais antiga. Ela remonta ao nosso passado colonial, quando a posse da terra era privilégio de poucos, onde a maior quantidade das pessoas era submetida a maus tratos, como essas pessoas eram escravizadas e tratadas como animais. Tudo isso serve um pouco para mostrar a persistência e a renitência de determinados vícios civilizatórios que ainda nos assolam até hoje.
Existem algumas histórias do passado que estão mal contadas ou incompletas e são abafadas. Cito, por exemplo, o esforço da Comissão da Verdade instalada no governo de Dilma Rousseff de jogar luz sobre os crimes praticados pelo Estado durante a ditadura militar e o quanto isso tudo mexeu com os brios da elite militar que, agora, apoia o governo Bolsonaro.
O conhecimento histórico pressupõe essas guerras, guerras de narrativas. Há instâncias poderosas tentando refazer e recontar a história a seu bel prazer. Um negacionismo que vigora institucionalizado, o que é mais terrível ainda. Nessa questão da Comissão da Verdade, é exatamente algo que foi mexer nesse vespeiro, a gente preferiu o esquecimento à discussão. A Lei da Anistia que, durante muito tempo, foi vista como uma coisa eminentemente positiva porque trouxe de volta uma série de pessoas que estavam exiladas, ela também teve uma função de apagamento dessas contradições e nós não as resolvemos. Nós simplesmente empurramos para debaixo do tapete, guardamos no armário esses esqueletos, como se eles não existissem mais. Na hora que você tenta fazer uma reflexão vem toda essa reação e por isso é que há uma tentativa deliberada, institucionalizada, de tentar contar a história por um outro viés. É isso. Pra isso que estudamos história, para entender exatamente onde enterraram esses esqueletos e em que armários eles estão guardados para abrir e tentar encontrar os responsáveis por esses crimes históricos.
Como vê o caso dos professores da Universidade Federal de Pelotas pressionados pelo governo por terem criticado o presidente? Como você, pesquisador, biógrafo e jornalista percebe esse momento de ameaças à liberdade de expressão, o direito a contestar o poder, no Brasil? Me parece que o governo tensiona para ver até onde a sociedade aceita ou não as agressões que ele vai desferindo.
Isso faz parte dos motivos pessoais que me fizeram vir morar aqui em Portugal. Hoje, no Brasil, a arte, a cultura, a ciência, a inteligência estão sitiadas. Há um ataque progressivo, gradativo, mas cada vez mais avassalador, em relação a essa áreas que representariam um espaço de reflexão crítica ao que está estabelecido. E esse cerceamento da liberdade de expressão é gradativo. Também concordo quando você diz que ele é feito num processo de tensionamento permanente até para se saber onde se pode ir, até tocar num nervo mais sensível e fazer um breve recuo para na sequência testar novos limites.
Como no caso do deputado Daniel Silveira (PSL) e sua defesa do AI-5.
O que é mais trágico notar é que exatamente aqueles que atentam contra a liberdade de expressão são os mesmos que reclamam da ausência da liberdade de expressão quando têm seus arroubos autoritários, quando cometem crimes explícitos. Como se a liberdade de expressão não trouxesse como consequência natural e automática a responsabilidade sobre aquilo que você diz. Quando você defende o AI-5 você não está usando da liberdade de expressão, você está pretensamente usando da capacidade que esta liberdade de expressão te dá para agredir a própria liberdade, para agredir e conspirar contra a própria democracia. Nós estamos entrando num terreno muito perigoso e eu não percebo que as instâncias que poderiam se contrapor a isso estejam usando os antídotos necessários. Eu acho que nós já fomos muito mais longe do que devíamos. Se não forem tomadas providenciais urgentes os resultados serão incontroláveis.
Como o historiador que olha o passado para entender o presente, enxerga o futuro?
Com perplexidade e preocupação. A partir desse estudo do passado que fiz no Arrancados da Terra percebi que alguns métodos de ação que envolvem uma carga forte de preconceito e de intolerância ainda são os mesmos sinais, os mesmos signos, a mesma semântica, se formos estudar do ponto de vista da semiótica, são as mesmas mensagens, as mesmas linguagens, por mais incrível que pareça. É impossível você, por exemplo, não analisar o manual do inquisidor que dava ali todas as instruções de como deveria pressionar um interrogado, um suspeito, e não associar imediatamente a práticas judiciais da Lava Jato, inclusive com a prática das delações premiadas e tudo mais. A história serve pra isso mesmo, para nos dar esses puxões de orelhas e nem sempre nós aprendemos com essas lições da história.
Não dá para ser otimista?
Eu sempre acreditei que o Brasil poderia ser um laboratório fantástico de uma experiência mundial de um povo criativo, veja nossa música, a cultura, infelizmente parece que isso não corresponde aos fatos. Todos os preconceitos, todas as intolerâncias, todos os ódios vieram à tona. E agora, no pior de tudo, a ignorância envaidecida e orgulhosa de si própria. Virou motivo de orgulho ser tosco, ser grosseiro, ser misógino, ser machista, ser preconceituoso. Infelizmente não é o país que nós imaginávamos construir. Ou nós reagimos da forma mais rápida possível ou vamos ficar sendo confrontados com esse espelho que não nos proporciona uma visão agradável de nós mesmos.
O quanto ser nordestino, de certa forma trazer dentro de si esse desenraizar-se, influencia tua obra?
Quando eu dediquei o livro aos refugiados, apátridas, proscritos, exilados, eu inclui lá na lista toda os retirantes, o que nos leva a associar à ideia do retirante sertanejo, nordestino, porque a minha experiência de vida, minha experiência toda traz dentro de mim a marca desta nordestinidade, desta cearensidade, de testemunhar isso de forma muito clara na minha própria trajetória de menino criado nos subúrbios de Fortaleza. Isso logicamente condiciona o meu olhar, condiciona a minha visão de mundo, a minha experiência. E norteia, logicamente, o meu trabalho, a minha escrita, os meus livros, o meu viés de interpretação da realidade. A expressão Arrancados da Terra, que é uma expressão bíblica, foi tirada de uma das epígrafes do livro é exatamente um versículo do livro do profeita bíblico Amós em que ele diz “eu os plantarei um dia no seu próprio solo e dali não sereis mais arrancados da terra que lhes dei”. Arrancados da Terra pressupõe ali uma dor, pressupõe uma violência simbólica e mesmo física e, como tal, como cearense ou pernambucano e nordestino, nós sabemos muito bem o que isso representa.