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Coluna

O “Efeito Lula”

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Entender o papel que a liderança de Lula pode cumprir na atual conjuntura exige, portanto, o entendimento de qual é a tarefa prioritária das forças populares - Ricardo Stuckert
Eu sou, na política, o resultado da consciência política da classe trabalhadora brasileira. Lula

As notícias da última semana mexeram com as expectativas de quaisquer militantes ou mesmo de quaisquer pessoas minimamente comprometidas com a defesa da democracia e da justiça social em nosso país. A onda de esperança levantada pela anulação das condenações do ex-presidente Lula, de um lado, e a reação do neofascismo diante das declarações de Lula, de outro, pareciam significar senão uma reversão, pelo menos uma relativa mudança na correlação de forças que enfrentávamos nos últimos anos. 

Diante da série característica de derrotas dos setores populares que nos levou ao ascenso do neofascismo ao Palácio do Planalto, era quase impossível não se contaminar pela euforia criada pela decisão do STF e pelo início do julgamento da suspeição do juiz Sérgio Moro no dia seguinte. O discurso de Lula na quarta só fazia ampliar a sensação de que a tarefa central do momento era não apenas reivindicar a vitória, mas projetar o discurso do ex-presidente e afirmar sua candidatura para 2022. Teríamos agora um calendário e um horizonte de vitória: com Lula seria possível derrotar o neofascismo nas próximas eleições. O “efeito Lula” se faria sentir inclusive numa mudança de postura do governo neofascista diante da prevenção e da necessária massificação da imunização de nosso povo para vencer a pandemia. 

E essa reversão das expectativas pelos lados de cá se dava, justamente, na mesma semana em que atingimos a marca diária de dois mil mortos, não digo pela pandemia, mas pelo descaso do Governo Federal com a vida dos brasileiros; se dava na mesma semana em que Bolsonaro lograva posicionar uma deputada fundamentalista na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados; na mesma semana em que o genocida hipotecou o retorno do auxílio emergencial ao congelamento salarial dos servidores públicos. 

Cabe à pergunta: como é possível que um único indivíduo assuma tamanha importância na disputa política dos rumos do país? A resposta imediata e mais evidente é a de que não se trata de um único indivíduo, mas de um indivíduo único, ou seja, daquele que é talvez o principal ator político de esquerda forjado desde o período da redemocratização. Longe de responder ao problema, tal afirmação o reinsere dentro de uma controvérsia que atua como um divisor de águas entre visões de mundo antagônicas. Me refiro ao debate acerca do papel das grandes personalidades na transformação da realidade, à relação entre as condições objetivas do desenvolvimento histórico e a determinação subjetiva das transformações. Em suma, qual o papel do indivíduo na história?  

A resposta liberal

A primeira resposta nos é dada pela ideologia que serve de fundamentação a todo o edifício institucional da política em uma sociedade capitalista. Para o pensamento liberal, o indivíduo é entendido como a célula mater da sociedade. Ele aparece, dessa forma, como principal e por vezes único sujeito da História. A sociedade é, para essa tradição teórica, um complexo emaranhado de desejos e interesses individuais. A existência de quaisquer instituições ou organizações coletivas se explica pela confluência momentânea desses desejos e interesses. O próprio Estado nasceria do acordo mútuo dos indivíduos para a preservação de sua liberdade e, não menos importante, da propriedade privada sobre si mesmos e sobre suas posses. 

Isso não quer dizer que para essa tradição inexistam vontades coletivas. É que essas vontades só podem se expressar a partir do somatório de múltiplos interesses e valores individuais. Daí que a política seja entendida dentro desses mesmos parâmetros: esse somatório das vontades deve também expressar-se na escolha de personas que as representem. O típico político burguês é entendido como o sujeito cujos interesses vocacionam determinada vontade coletiva. Não obstante, também ele age de acordo com seus próprios apetites, busca através da política realizar seus anseios mesquinhos e particulares. Não à toa os grandes meios de comunicação e a intelectualidade liberal preste tanta atenção à pequena política, à política dos bastidores, das tramoias, dos conchavos, em suma, a política da interação mesquinha entre interesses singulares. 

A narrativa hegemônica tenta traduzir toda e qualquer demanda coletiva na interação entre essas personalidades. A força da ideologia dominante se mostra também entre nós, quando buscamos imputar a responsabilidade pelo quadro atual de barbárie social aos eleitores de Bolsonaro. Indicamos, com isso, que a política é feita a partir da participação atomizada dos indivíduos pelo sufrágio universal. Bastaria o convencimento de cada um e cada uma de nós a escolher corretamente as pessoas mais capacitadas para representar os interesses da maioria em cada pleito eleitoral. 

Seria desnecessário gastarmos muita tinta afirmando a utilidade dessa visão de mundo para a manutenção da dominação de classe. Mesmo dividida em suas diversas frações e entrecortada pela concorrência, a burguesia possui o Estado como órgão de sua dominação coletiva sobre os trabalhadores e as demais classes. Os de baixo têm sempre maiores dificuldades para organizar-se e lutar por seus direitos, fundir seus interesses em projeto coletivo e, a partir disso, construir organizações políticas capazes de se bater contra o poder concentrado da classe dominante. A democracia liberal cuida, dessa forma, de atomizar a participação política das demais classes da sociedade, dificultar-lhes a construção de organizações autônomas e, principalmente, induzir a passividade política entre os trabalhadores. 

Para o liberalismo, também a realização de determinado programa político depende, antes de tudo, dos talentos e capacidades singulares dos indivíduos. Na última quarta-feira vimos Lula afirmar que é possível fazer a economia voltar a crescer e retomar as políticas de distribuição de renda, investimento em educação e saúde, desde que o presidente tenha capacidade de dialogar com toda a sociedade. Ouvimos isso de Lula e pensamos: ele já mostrou que sabe como fazer isso, durante o seu governo. De fato, a reivindicação do programa neodesenvolvimentista no discurso de Lula na última quarta parecia ser dotada de enorme radicalidade. Isso porque, diante da barbárie social gerada pela combinação entre ultraliberalismo e neofascismo nos dias atuais, mesmo o mais fraco reformismo mostra-se imensamente mais vantajoso aos interesses da maioria dos trabalhadores. Teríamos, de um lado, um presidente neofascista que não tem e não pode ter nenhum compromisso com os interesses da maioria do povo brasileiro e, de outro, Lula, um candidato comprometido com a democracia e o desenvolvimento social. 

A visão liberal segundo a qual a mudança social depende da emergência das grandes personalidades históricas mostra aqui toda a sua força. Se o programa neodesenvolvimentista se recoloca como possibilidade pela emergência de Lula como provável candidato em 2022, também a derrota do neofascismo enquanto projeto de dominação se resume à derrota de Bolsonaro nesse mesmo ano. 

Pode-se argumentar que não se trata de afirmar que Lula tem força, sozinho, de derrotar Bolsonaro, mas que sua reentrada no jogo da política nacional poderia despertar amplos setores da classe trabalhadora para a luta política, pelo próprio significado de sua liderança de massas. Aparentemente, teríamos nos retirado do terreno da ideologia liberal uma vez que, aqui, já não se trata de afirmar Lula como sujeito político fundamental, mas sua capacidade de despertar os trabalhadores como força social e política na conjuntura nacional. É importante perceber, contudo, que o liberalismo não desconhece a existência de classes sociais. O que ele faz é reduzir a atuação política das classes aos limites da democracia burguesa. Também as classes são, segundo essa visão de mundo, um emaranhado de pessoas com condições de vida e certos interesses comuns. Elas podem fazer valer seus interesses no interior da república parlamentar, desde que encontrem homens ou mulheres capazes de representá-los. Novamente, é o indivíduo que conformaria a classe a partir de seus talentos e aptidões individuais. 

Acreditamos, contudo, que há outra forma de situar o papel dos indivíduos na história. Trata-se de entender que a História é feita por sujeitos coletivos. A mudança nas relações sociais só se torna possível a partir da construção da classe social enquanto sujeito histórico. 

O papel do indivíduo na história

Enquanto indivíduos, nossa subjetividade é formada a partir das relações sociais em que estamos inseridos. Tais relações são uma expressão do estágio atual de desenvolvimento social, onde o aspecto determinante são as contradições de classes em suas diversas expressões. Em cada estágio do desenvolvimento humano uma determinada classe encarna, pelas suas condições de vida e por seus interesses coletivos, a possibilidade e a necessidade do progresso. Esse foi o caso da burguesia francesa em sua luta contra o antigo regime durante o século XIX. Esse é também o caso do proletariado em nosso tempo. 

Essa visão de mundo implica um olhar diferente sobre a atuação das grandes personalidades na política. Os diversos partidos que atuam na política se definem pelo real interesse de classe que representam. Só conseguimos perceber isso indo além do discurso que proferem e analisando suas ações. Essas ações estão sempre limitadas por uma determinada relação de forças entre as classes. É essa relação de forças que condiciona a atuação dos indivíduos, entendidos aqui como parte da direção da classe que representam.

Olhar a política atual a partir dessas lentes implica, por exemplo, nos perguntarmos não somente se Bolsonaro é ou não um neofascista. Implica principalmente explicar qual a natureza de classe do movimento social e político que levou Bolsonaro à presidência e lhe fornece sustentação. Assim como o fascismo histórico, o neofascismo nasce do descontentamento dos setores médios, de sua negação em relação à política e aos valores democráticos. Tal movimento cresceu na sociedade brasileira desde as mobilizações a favor do golpe de 2016 até a eleição de Bolsonaro. Esta é a base social de massas que sustenta o presidente. Mas o neofascismo não tem por função realizar os anseios dessa base social por inteiro. Tal movimento serve aos interesses do grande capital financeiro internacional. 

Esse entendimento do neofascismo nos é útil para apreender as movimentações contraditórias de Bolsonaro: ele necessita manter a hegemonia sobre o reacionarismo desses setores médios, porque são esses setores que lhe permitem influência sobre os trabalhadores desorganizados, pequenos comerciantes, etc. Contudo, seu governo deve atender prioritariamente aos interesses do grande capital (ajuste fiscal, privatizações, desmonte dos direitos trabalhistas, entre outras medidas). 

Retirar Bolsonaro da presidência, seja através da luta pelo impeachment, seja através do voto em 2022, significa impor uma derrota ao neofascismo porque retira desse inimigo de classe o controle sobre o aparelho de Estado. Mas fazer isso implica antes de tudo minar sua influência de massas. Em outras palavras, o que dá sustentação ao governo Bolsonaro é o mecanismo pelo qual o grande capital internacional mantém hegemonia sobre o movimento reacionário composto pela pequena burguesia e que angaria apoio também entre uma parcela importante dos trabalhadores brasileiros. 

Qual o papel de Lula no interior desse processo? Não é raro falarmos de vários “Lulas” nos últimos trinta anos. Dizemos que o Lula de 1989 era diferente do Lula que se elegeu em 2002. A grande mídia diverte-se falando de um “lula radical” e um “lulinha paz e amor”. Se nos atermos aos limites da visão de mundo liberal, somos obrigados a explicar essas mudanças pela evolução subjetiva da consciência e postura da liderança de Lula. Dessa forma, para o bem ou para o mal, Lula teria abandonado a radicalidade presente no programa que defendia em 1989 por ter desenvolvido a capacidade de conciliar os interesses das diferentes classes sociais, aspecto que teria sido decisivo para o sucesso dos governos petistas. 

Mas se entendermos que a política é determinada pela força social das classes em luta, vemos que Lula em 1989 tinha a sua frente um poderoso movimento de massas dirigido pela classe trabalhadora e suas organizações, que marchavam em torno de um programa de reformas estruturais antagônico aos interesses do capital financeiro internacional e à burguesia brasileira a ele associada. A correlação de forças em 2002 era muito diferente desta. A classe trabalhadora vinha de anos de defensiva em suas lutas diante do avanço das medidas neoliberais durante os governos tucanos. Tal rejeição ao neoliberalismo se expressava também em parte do empresariado brasileiro, a grande burguesia interna, que demandava o crescimento do mercado interno e políticas de investimento e infraestrutura por parte do Estado. 

A aliança entre capital e trabalho, referida por Lula em seu discurso da última quarta-feira, foi uma expressão particular da relação de forças presente em seu governo. Os avanços e limites do neodesenvolvimentismo dos governos petistas se explicam, dessa forma, pela tentativa de equacionar interesses antagônicos no interior do aparelho de Estado. Ao privilegiar os interesses da burguesia interna, Lula atuava nas linhas de menor resistência dessa classe para ampliar direitos e conquistas a uma parcela importante dos trabalhadores brasileiros, mas mantendo a hegemonia dessa fração de classe e sua relação com o capital financeiro. Romper com esses limites demandava a utilização do aparelho de Estado para aumentar a força social dos trabalhadores no interior do bloco no poder. Dito de outra forma, significava o estímulo da organização popular, da combinação entre as políticas estatais e processos de educação popular, da ampliação dos espaços de participação e decisão política permanentes. Tal opção significava atuar contra os interesses da burguesia dependente e, mais do que isso, exigia romper com os limites da democracia liberal, buscando a sustentação do governo a partir do crescimento das forças populares. 

A relativa adaptação do Partido dos Trabalhadores e de sua principal liderança aos limites impostos pela democracia liberal pode ser entendida como fruto da pressão exercida pela ideologia burguesa sobre a classe trabalhadora e suas organizações. Ela abriu caminho para que o grande capital internacional em crise e recobrasse a hegemonia sobre o conjunto das frações burguesas e, mais importante, influenciasse a própria base dos trabalhadores desorganizados que elegeu Lula em 2002. O golpe de 2016 rompia a idílica aliança entre capital e trabalho, com vistas a alijar os trabalhadores do exercício da política, perseguir suas organizações de classe e, em suma, consolidar a mais nua e crua dominação do capital sobre o trabalho.  

Entender o papel que a liderança de Lula pode cumprir na atual conjuntura exige, portanto, o entendimento de qual é a tarefa prioritária das forças populares para modificar a atual correlação de forças. Somente a força organizada dos trabalhadores pode possibilitar a adoção de um programa democrático popular que, a um só tempo, seja capaz de derrotar o neofascismo e superar os limites do neodesenvolvimentismo. 

A tarefa, como se sabe, não é simples e não se ajusta muito bem às margens estreitas do calendário eleitoral. Mas tanto a garantia de eleições democráticas quanto a capacidade de derrotar o neofascismo dependerão de concentrarmos esforços no trabalho junto ao povo. Em meio à enorme crise sanitária que vivemos, exigirá não apenas criatividade, mas capacidade de traduzir bandeiras de luta para o diálogo e a propaganda junto ao povo. Derrotar o neofascismo implica nos dedicarmos a retirar milhões de trabalhadores da atual paralisia política que lhes foi imposta. Significa reatar os laços políticos e organizativos dos trabalhadores com suas organizações autônomas de classe. 

Que o “efeito Lula” não signifique, como outrora, a passividade da classe trabalhadora diante de seus inimigos. Que não signifique apenas buscar quem fale em nome dos trabalhadores, mas a construção das formas pelas quais a classe trabalhadora possa novamente falar e agir em seu próprio nome. Se Lula é o resultado da consciência política de milhões de trabalhadores, é no avanço da consciência do nosso povo que poderemos definir seu papel na História. 

 

Edição: Vanessa Gonzaga