Vamos ter que tecer com todas essas linhas a nossa história para um mundo novo
Pandemia – substantivo feminino! Temos lutado muito para afirmar na linguagem a perspectiva de gênero, com a intencionalidade de destacar a dimensão da mulher e das suas atividades e ações na dinâmica da sociedade. Foi assim quando elegemos a primeira mulher presidenta do Brasil. Chamar Dilma de presidentA confrontou com posições linguísticas ortodoxas, mas sobretudo com posturas misóginas. A prática social saiu vitoriosa e hoje o que nos aperta é a saudade, também substantivo feminino, da nossa presidenta Dilma!
Faço esta introdução porque quero tratar neste meu primeiro artigo, de como a pandemia atingiu a vida das mulheres em múltiplas dimensões. Evidentemente que não foi pelo fato de pandemia ser um substantivo feminino. Essa relação gramatical serve para emoldurar um quadro de grandes dificuldades, de muitas perdas e de aprofundamento das desigualdades de classe, de gênero e de raça lançadas nos dados resultantes da pandemia da covid-19.
Observa-se que esses dados relacionados às mulheres se comunicam entre si e expõem o modo de tratamento dado a mulher trabalhadora no ambiente profissional e seus impactos no ambiente familiar. Começo citando as professoras que são maioria na categoria do magistério: somos 82% entre professores da educação básica!
Foram elas, na área da educação, as mais atingidas pela pandemia. Na escola tiveram que se reinventar para as aulas remotas, exercitando a criatividade, buscando alternativas, tentando manter o vínculo afetivo com os estudantes e reorganizando todo o tempo pedagógico. Em casa, que passou a ser sala de aula, as múltiplas tarefas já existentes se multiplicaram: atividades domésticas do dia a dia, dar aulas, acompanhar as aulas remotas dos filhos e das filhas. Com a pandemia, redobraram os cuidados com a higiene da casa, da comida, das compras. As professoras, que já lidam com uma profissão de grande responsabilidade, estão exaustas! As indefinições sobre este tal de “novo normal” recaem fortemente na educação.
Outra categoria muito abalada pela pandemia foi a das trabalhadoras domésticas, também, majoritariamente feminina. Secularmente oprimidas, herdeiras da escravidão, as trabalhadoras domésticas conquistaram seus direitos trabalhistas muito recentemente. No entanto, permanecem os estigmas que perduram em um ciclo de exploração sem fim. Com vínculos ainda precários em muitos casos, foi sobre elas que o desemprego bateu forte. Mulher, periférica, negra, chefe de família são as características que compõem o perfil da maioria das trabalhadoras domésticas e o somatório dessas identidades aumenta o risco-pandemia enormemente.
Por fim, as mulheres que estão na linha de frente lutando initerruptamente contra a pandemia: as profissionais de saúde. Médicas, enfermeiras, técnicas de enfermagem. Mulheres exauridas fisicamente e psicologicamente. Trazem no corpo e na alma as marcas de horas intermináveis de trabalho e sob alta tensão. Lidam com uma doença nova e resistente, com escolhas difíceis, com o choro das famílias, com a dor dos outros e com a sua própria dor. Passam dias sem ver os filhos, os maridos, os familiares. Além de tudo, faltam estrutura e materiais. É uma categoria que não pode trabalhar remotamente como as professoras, que não é alvo do desemprego como as domésticas, mas está sem saber quando vai poder descansar.
A pandemia do coronavírus, da forma como se alastrou, dificilmente seria evitada no Brasil. Mas poderia ter sido contida, seus efeitos minimizados, as medidas de prevenção melhor efetivadas.
Porém, o regente do processo no Brasil é um genocida que ocupa a presidência do país. Um machista conservador e negacionista. Um misógino que desrespeita as mulheres. Não é à toa que as mulheres brasileiras sentem mais profundamente os efeitos da pandemia.
A todos os fatores expostos, acrescente-se o aumento da violência doméstica, do feminicídio e do adoecimento mental. Some-se os dados gritantes de tensionamento na rotina corriqueira do cuidar, vivida pelas melhoras. Cuidar da casa, cuidar da família e hoje cuidar dos doentes contagiados pela covid-19.
Como sairemos desta crise sanitária, ética, econômica, política? O que as mulheres agregarão à sua luta histórica por direitos, autonomia e felicidade? Vamos ter que tecer com todas essas linhas a nossa história para um mundo novo, que esperamos se construa sobre o pandemônio no qual Bolsonaro transforma a pandemia no Brasil.
Que possamos fazer a síntese dos substantivos masculinos – o afeto, o medo, o luto – tão presentes hoje, com os substantivos femininos de uma identidade permanente e universal: a luta, a esperança, a solidariedade.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal
Edição: Vanessa Gonzaga