A humanidade, como a entendemos, segue passando por um teste decisivo
“Papai, você esqueceu a máscara”. A frase saiu da boca do meu filho um dia desses. Eu já tava com a mão na porta, saindo de casa numa das poucas vezes em que me atrevo, rumo a uma atividade essencial que é a luta por direitos. O menino tem menos de 3 anos de idade. Quase a metade da vida passada na quarentena, o pirraia já sabe que quando alguém de nós chega da rua tem que passar correndo para o banho “para tirar o coronavírus”, proparoxítona que fala bem bonitinho. A gente fica assim, sem saber se ri ou se chora. A gente lida.
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Já faz um ano que a gente começou a falar do coronavírus no Brasil. Quem presta atenção nas coisas já sabia que não seria apenas uma gripezinha. Dia desses também superamos a marca das 281 mil pessoas mortas pelo vírus da Covid-19. Ou seja: a pandemia já levou mais gente do que o HIV em 37 anos de existência. Enquanto eu escrevo, cientistas debatem quando chegaremos à marca de 3 mil mortos em 24 horas. Não é pouca coisa. Nada, absolutamente nada, tem matado tanta gente em tão pouco tempo.
Quando o vírus desembarcou no Recife, vindo da Europa numa bagagem de grife, a gente correu pra casa. Quem não se lembra de um povo atabalhoado armazenando papel higiênico e lata de sardinha? Eu lembro bem. Mas lembro muito mais de dezenas de campanhas rolando. Lembro da classe média mais privilegiada ‘tirando o escorpião do bolso’ e ajudando mais gente a ficar em casa. Lembro de uma galera massa em diversos territórios da cidade organizando campanhas de arrecadação. Da prefeitura entendendo sua tarefa de distribuir cestas básicas pra quem tem criança na escola. Do governo decretando um rígido lockdown, que, quando começou a funcionar, foi imediatamente interrompido, menos por questões sanitárias, mais por questões econômicas.
Em todos esses meses, nos poucos momentos em que a pandemia dava sinais de se “estabilizar”, jamais tivemos uma queda brusca no número de mortos. Parecia que estava de boa a gente perder diariamente 500, 600 pessoas no país. Em Pernambuco, era como se um ônibus pegasse fogo todo dia matando todo mundo que está dentro. Naturalizamos. Como muita gente parece naturalizar o que está acontecendo hoje em dia. Como você estaria se, todos os dias, acompanhasse pela televisão a queda de dez aviões lotados? Não estamos longe disso.
Confesso que fui romântico no início desse perrengue todo no comecinho do ano passado. Achava que, durando dois ou três meses, a pandemia – nunca bem vinda – poderia dar às pessoas um senso maior de comunidade, de solidariedade. Que poderíamos ter um impacto ambiental positivo na medida em que reduziríamos, por uns tempos, as emissões de monóxido de carbono. Que produziríamos menos lixo. Que compreenderíamos a importância de quem tem mais estender a mão pra quem tem menos. Que o Estado poderia cumprir seu papel, entendendo que nada, absolutamente nada, seria mais importante do que salvar as vidas da maior quantidade possível de pessoas.
Naquele momento, a gente já sabia que o governo federal não seria parceiro. Mas nem a mais lúcida das céticas imaginaria o esforço de Bolsonaro e seus asseclas pra jogar a favor do vírus. Temos o único presidente do mundo a rechaçar tudo o que a ciência recomenda: uso de máscaras, isolamento social, vacina. Que faz graça com a quantidade de mortos e que, o tempo todo, busca um mórbido ganho político em cada pessoa querida que a gente é obrigado a enterrar.
Todos esses meses fizeram com que o vírus, de uma forma ou de outra, capturasse todas as nossas vidas. A humanidade, como a entendemos, segue passando por um teste decisivo. E eu sigo acreditando em dias melhores. Embora esse vírus ainda traga muitos mistérios que a medicina vem tentando solucionar, as nossas tarefas se apresentam de forma cada vez mais objetiva.
Já sabemos que, até ter vacina pra todo mundo, é inútil pensar em qualquer tipo de normalidade. Então segue sendo tarefa dos poderes públicos garantir a compra de doses que possam chegar a todo mundo que vive por aqui. Prefeituras e governos vão precisar correr e isso tem que ser prioridade zero. Antes de asfaltar rua, de reformar escola, de fazer propaganda da gestão, de construir prédio bonito, tem que ter vacina. No ritmo em que estamos vacinando, precisaríamos de anos para universalizar a imunização. Não, não temos tanto tempo.
Tenho certeza que você, lendo ou escutando este texto, já foi afetada pela Covid. Já perdeu alguém na família ou já ficou com o coração apertado com alguma pessoa querida nas UTIs que nunca serão suficientes. Talvez tenha perdido o emprego ou o sustento que tinha no pequeno negócio que tocava. É possível que tenha enfrentado um dilema bem atual: correr atrás da sobrevivência financeira ou se proteger do vírus? Dilema que ganhou contornos de tragédia com a recente decisão do governo federal em reduzir o auxílio emergencial pra irrisórios R$ 150 reais por mês.
Então mais uma vez tá na hora de buscar o que há de melhor em cada uma de nós. Porque simplesmente não dá pra enfrentar o vírus com socos e pontapés. Nem pra ficar com a bunda no sofá esperando a vida passar (ou terminar). Mas tem muita gente em condições de se isolar. E gente que ficou ainda mais rico na pandemia precisando entender a obrigação de chegar junto de quem ainda não tem como se proteger. Tá na hora da solidariedade deixar de ser conversa bonita na propaganda do banco. Precisa ser prática cotidiana. Precisa contaminar a política pública, precisa ser guia para tudo que precisamos fazer daqui para a frente. Meio que repetindo: nada, absolutamente nada pode ser mais importante do que salvar as vidas da maior quantidade possível de pessoas.
Nesse tom, também já entendemos que jamais teremos uma estratégia nacional de enfrentamento ao Covid com Bolsonaro e sua gangue no poder. Sim, sim, eu mesmo era um que, lá em 2018, dizia que ele precisaria conduzir seu governo até o final, para ser retirado apenas nas urnas. Mas simplesmente não dá mais. Não fosse apenas por rachadinhas, interferência na Polícia Federal e outros pequenos e constantes delitos oficiais, não dá pra ter como líder da nação uma pessoa que parece celebrar cada vez que o gráfico de mortes aponta para cima. O impeachment do presidente genocida não é um desejo. É uma urgência. Se quem te representa no Congresso Nacional não entendeu isso ainda, tá na hora do convencimento.
Estamos mal, é verdade. Mas ainda somos, ainda existimos. E insistimos. Por que, sim, com certeza absoluta, tudo isso vai passar.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal
Edição: Vanessa Gonzaga