Beatriz (nome fictício), menos de 12 anos, vítima de abuso sexual estava reconstruindo sua vida com a ajuda de um psicoterapeuta em uma policlínica do Recife, enquanto aguardava a Justiça punir o seu agressor. Mas aí veio a pandemia e a garota perdeu a possibilidade do atendimento, afinal com apenas um smartphone em casa para dividir com mais três irmãos não foi possível manter o acompanhamento virtual.
O impacto da crise sanitária da covid-19 na história de Beatriz e de tantas outras crianças e também adolescentes sobreviventes da violência doméstica ou sexual não é fácil de mensurar. Quem atua na chamada “rede de proteção” desses pequenos cidadãos alerta que a situação é “muito preocupante” e tem colocado meninos e meninas em risco. Seja na prevenção de casos, seja no atendimento às vítimas, as entidades apontam que as fragilidades se acentuaram à medida que o coronavírus foi avançando.
O coordenador da Escola de Conselhos de Pernambuco, Humberto Miranda, avalia que não só os casos de violência física e sexual aumentaram nesse último ano, como os episódios de negligência e violência psicológica também, enquanto que pouco ou nada foi feito para fortalecer as instituições que zelam pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
“As entidades da rede de proteção não foram preparadas para essa questão pandêmica. Por exemplo, muitos conselhos tutelares precisaram fechar ou mudar a dinâmica de atendimento e nada para mudar essa realidade foi feito. As escolas também precisaram ser fechadas, assim como os espaços de denúncias que ficaram comprometidos”, afirma Miranda.
Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apontam que, no início da crise sanitária, em março de 2020, o número de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Brasil aumentou 85% em relação ao mesmo período em 2019, quando 11.232 registros foram computados pelo Governo Federal. No ano passado, o total subiu para 20.771.
Em abril de 2020, com o afastamento das salas de aula, os números desceram. No total, foram efetuadas 19.663 denúncias desta violência contra meninos e meninas no país. Os dados, segundo as entidades que atuam no eixo da promoção dos direitos, não significam que crianças e adolescentes estão sofrendo menos violência, eles apontam, na verdade, para o aumento da subnotificação.
“A rede de proteção tem que ser percebida a partir do olhar responsável. Os conselheiros tutelares precisam ser protegidos e fortalecidos, assim como os Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e os Centro de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), enfim todos os profissionais que estão na ponta, inclusive pensando na inclusão desse grupo entre os grupos prioritários da vacinação contra covid-19”, argumenta Miranda.
Fragilidade histórica
A escassez de recursos, o pouco investimento em profissionais e a falta de prioridade entre as ações de políticas públicas dos governos vêm minando o trabalho de proteção das crianças e adolescentes há anos. A professora e pesquisadora do departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Valéria Nepomuceno, a rede propriamente dita sequer existe.
A especialista explica que as instituições que compõem o sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente existem e funcionam, isso inclui os conselhos tutelares, os Cras e Creas, as unidades de saúde e de educação e as organizações não-governamentais, por exemplo. Contudo, de acordo com ela, falta muito para que haja um trabalho articulado entre esses e os demais atores como os que formam o sistema de Justiça.
“É preciso investimento em novas metodologias, fazer melhor uso das tecnologias disponíveis para recriar as formas de atendimento. O que vemos, porém, é que não há planejamento público para isso nem recursos, e a pandemia está agravando situações que já eram extremas”, diz Nepomuceno.
Para a coordenadora do Programa Direitos da Criança e do Adolescente, do Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), Kátia Pintor, a pandemia acentuou uma sequência de desmontes das políticas públicas liderada, desde 2016, pelo Congresso Nacional e o Governo Federal, culminando com a Proposta de Emenda à Constituição que impôs o teto de gastos. “A gente vem percebendo esse desmonte na ponta, por exemplo, nos Cras e Creas, al[em de recursos que deixaram de ser repassados, não só na assistência, mas em todas as políticas sociais”, afirma.
Mais esforços
Reinventar-se e utilizar os meios disponíveis foi o que fez o Cendhec para tentar diminuir os casos de violência e abuso, sobretudo no âmbito familiar. Em 73% das ocorrências desses tipos de crimes contra meninos e meninas acontecem dentro de casa, sendo que em 40% o pai ou padrasto é o autor, conforme dados da Ouvidoria dos Direitos Humanos.
O Cendhec então iniciou a campanha Escute as Crianças e os Adolescentes, financiada pela associação alemã Kindernothilfe (KNH). A iniciativa aconteceu em sete comunidades periféricas do Recife impactando 3.850 crianças, 3.600 adolescentes e 210 famílias que recebem informes virtuais disparados em redes sociais e aplicativos de mensagens. Com a pandemia, no entanto, foi preciso mais: pela primeira vez em sua história, o Cendhec trabalhou com a distribuição de cestas básicas.
“Quando a gente começou os atendimentos,não tinha como a gente não perceber essa necessidade de chegar com alguma coisa a mais. Não tem como orientar uma pessoa sabendo que ela tem fome. São famílias que tiveram o direito à alimentação negado e, por falta de documentação ou acesso ao aplicativo, até hoje não receberam auxílio emergencial. Então, junto com a cesta entregamos sempre o material informativo”, conta a assistente social e integrante da coordenação do projeto Teia de Proteção do Cendhec, Alexsandra Silva.
Readaptar-se para diminuir o impacto da pandemia na vida de crianças e adolescentes marcados pela violência também tem sido necessário para a promotora de defesa e cidadania da capital do Ministério Público de Pernambuco, Jecqueline Elihimas. Responsável por atuar nos direitos difusos e coletivos de meninos e meninas, a promotora fiscaliza as casas de acolhimento para as vítimas de violência.
“As visitas familiares, por exemplo, passaram a ser agendadas, com tempo regulado e sem permissão de contato entre as crianças e os parentes ou no caso de processo de adoção dos pretendentes. Muitos desses espaços funcionam com doações e tem nos preocupado também a falta de alimentação e outros itens essenciais. Tudo isso é consequência da pandemia que a gente tem que ir superando”, explica.