O que queremos esconder ao não caracterizar a fome como sendo um de nossos graves problemas?
Mais de 1 ano de pandemia no mundo. Aqui no Brasil o saldo (até agora) é de mais de 330 mil mortes por causa do coronavírus, afora os casos subnotificados, assim como aqueles que devido ao colapso do sistema de saúde encontraram dificuldades de acesso a tratamento mesmo a outras enfermidades.
Também poderia entrar na conta as mortes evitáveis caso tivéssemos condições dignas para todo o nosso povo viver. Condições de saneamento, saúde, moradia, educação, trabalho, renda. Se formos mais a fundo, encontraríamos também a ausência de pessoas por tristeza de ter perdidos familiares ou pessoas queridas, desespero por não ter o que dar para seus filhos comerem, incerteza diante o hoje, que dirá o futuro.
Carolina Maria de Jesus, escreveu entre as décadas de 1940 e 1950, um diário cotidiano sobre a sua vida na favela e sobre a fome, ou ainda sobre o desespero de uma mãe quando à hora das refeições seus filhos perguntavam “tem mais?”. Porque não tinha. O que estava servido na mesa era o que tinha. E todo dia o medo da pergunta assombrava novamente. O livro “Quarto de Despejo - Diário de uma favelada”, em 1960, ano que foi lançado alcançou a venda de mais de 70 mil exemplares, nos primeiros doze meses. Nos cinco anos seguintes foi traduzido para 14 idiomas e chegou em mais de 40 países. Pouco depois esta importante obra caiu num profundo e injusto esquecimento.
Escrito por mãos retintas, de uma mulher que criou sozinha seus três filhos, enquanto catava papel, ferro e muitas vezes comida para amenizar a miséria da família. A sua vida retrata ainda hoje parcelas grandes de mulheres e homens, que vivem nas periferias das cidades e que precisam dia após dia inventar jeitos de sobrevivência diárias. E vem sendo assim.
Josué de Castro escreveu certa vez que o tema da fome tem sido tratado como um tabu. De modo que a cada mil publicações sobre a guerra, por exemplo, encontramos apenas uma sobre a fome. O que queremos esconder ao não caracterizar a fome como sendo um de nossos graves problemas? E porque tanta dificuldade em resolver esta questão histórica?
Famílias populares têm sido desprezadas ao longo da história de conformação das elites brasileiras mas também não são tão lembradas porque nem é tão elite assim. A questão é que a quantidade de pessoas que vivem com fome tem aumentado de forma exorbitante desde a interrupção dos governos progressistas no país.
Em 2014, o Brasil havia deixado de fazer parte do Mapa da Fome. No entanto, de acordo com dados recentes do IBGE, atualmente mais de 14,3 milhões de pessoas encontram-se sem emprego e segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) mais de 17,3 milhões estão vivendo em situação de extrema pobreza. E um número superior a 117 milhões de pessoas vivenciam situação de insegurança alimentar, não acessam alimentação suficiente, regular, nutritiva diária e semanalmente.
Numa linguagem direta, muitas encontram-se sem ter o que comer e de onde buscar. Dados que têm alarmado o mundo sobre a nossa situação mas que são tratados pelo pivô do atual genocídio -que deveria estar governando o país a favor das necessidades do povo- como não merecendo investimento público que buscasse sanar tragédia social de tal magnitude.
Articulações de movimentos têm promovido campanhas de solidariedade em todo o país e garantido de forma conjunta as refeições imediatas de uma parte da população que hoje se encontra sem condições de prover a si mesmas. Este preenchimento mesmo que parcial das panelas se contrapõe à política da morte e incentiva a solidariedade entre a classe trabalhadora, trazendo alguma esperança diante de tão grave cenário.
Além destas iniciativas, aqui em Recife uma outra forma de resistência tem se apresentado como fundamental aos movimentos populares: a exigência de renda básica permanente que tem sido reivindicada ao governo municipal. Diferente do auxílio emergencial, a renda básica deve estar calculada em um valor mais aproximado das necessidades básicas das famílias enquanto vivemos esse momento de colapso no contexto político brasileiro. Organizações populares articuladas a mandatos progressistas têm pressionado que o orçamento público seja reavaliado e destinado ao que nesse momento é o fator mais urgente, salvar a vida das pessoas.
Enquanto encerro estas linhas, vejo a notícia de que no último dia o Brasil contabilizou mais mortes do que 133 países, cada um separadamente, no período de 1 ano de pandemia.
O coronavírus agravou as desigualdades já existentes no país e acelerou um processo de genocídio que vem ceifando sonhos, vidas, projetos, principalmente daqueles que já viviam em situação de vulnerabilidade social. A pobreza, o racismo, o extermínio de jovens negros na periferia, a ausência de investimento na saúde pública e em vacinas para todos, assim como o comprometimento do atual presidente da república com os grandes empresários e o descaso com a vida da maioria da população fazem de cada dia uma batalha diária para continuarmos existindo e resistindo. Todo dia a afirmação deste pacto, mesmo que silencioso, em não morrer.
Que a gente encontre motivos para construir um futuro que há de existir e, que quando qualquer de nossas crianças perguntar se tem mais, possamos responder com um sorriso largo, que sim, tem muito mais.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal
Edição: Vanessa Gonzaga