Pernambuco

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A vida de Soledad Barrett e sua filha, há 30 anos buscando informações sobre a mãe

Vivendo em Olinda, filha da militante paraguaia assassinada em Pernambuco concedeu entrevista ao Brasil de Fato

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Aos 28 anos a paraguaia Soledad Barrett foi presa, torturada e assassinada por militares em 1973 - Reprodução

No último mês de abril completou-se 57 anos do golpe militar de 1º de abril de 1964. O Brasil de Fato Pernambuco trouxe a série “Memórias da Resistência, com histórias curtas sobre organizações políticas e personagens que tiveram suas vidas afetadas pela ditadura militar brasileira. Uma das histórias contadas foi da paraguaia Soledad Barrett Viedma, que desde muito jovem teve sua trajetória de vida afetada pelo radicalismo da extrema-direita, vivendo na Argentina, Uruguai, Rússia, Cuba e Brasil, sendo morta pela ditadura no Recife, em 1973.

Mas a história que contamos sobre Soledad trazia erros, em parte pela escassez de informações precisas mesmo em fontes oficiais. A Ditadura Militar brasileira não só assassinou militantes, como mentiu sobre a vida e morte dessas vítimas. A verdadeira história desses militantes ainda está sendo recontada. E para melhor conhecer a trajetória desta lutadora paraguaia, o BdF Pernambuco entrevistou a pedagoga Ñasaindy Barrett, filha de Soledad e pesquisadora da vida da militante. Ñasaindy, que hoje vive em Olinda, nasceu em Cuba e é filha do também militante José Maria Ferreira, outra vítima da ditadura.

A cubana, que compartilha parte das pesquisas numa página no Facebook, sonha ter melhor documentada a história de Soledad – e de parte da família Barrett Viedma – seja em livro ou produção cinematográfica. Além de toda a pesquisa feita por Ñasaindy, existe a necessidade de obter uma documentação oficial mais robusta (majoritariamente em espanhol, já que os Barrett migraram muito entre esses países) e principalmente de entrevistas com militantes e ex-militantes (visto que durante as ditaduras a atuação era principalmente clandestina). Mas Ñasaindy, aos 52 anos, dos quais mais de 30 dedicados à pesquisa sobre suas origens, tem informações suficientes para compartilhar grande parte da vida de Soledad Barrett.

Família militante e nascimento no Paraguai

O avô de Soledad é Rafael Barrett, um espanhol que migrou para a América Latina no início do século 20. Ele era de uma família de classe média na Espanha, engenheiro, que falava várias línguas. E ao chegar na América Latina fica muito impactado com a pobreza e a desigualdade social. Na Argentina, passa a escrever para jornais, com olhar de crítica ao sistema. É mandado a trabalho para o Paraguai e se apega ao local. “Ele decide investir numa luta pessoal de denúncia da escravidão da qual eram vítimas os indígenas, no sistema de coleta da erva mate”, diz a bisneta.

Entre sua chegada a Argentina e morte por tuberculose no Paraguai foram apenas seis anos, mas com grande impacto sobre os jornais e literatura paraguaia, uruguaia e argentina, já que também escrevia crônicas e contos. Rafael Barrett casou-se com a paraguaia Francisca “Pachita” López. “Ela viveu bastante, foi muito presente na vida da família e escreveu um livro em que expõe cartas, revelando o relacionamento com Rafael, que foi preso e perseguido”, diz Ñasaindy. O casal teve um único filho: Alex Rafael, pai de Soledad.


Espanhol radicado no Paraguai, Rafael Barrett viveu intensamente seus seis anos na América do Sul / Reprodução

Nascida em 6 de janeiro de 1945, na cidade de Laureles, Paraguai, Soledad Barrett Viedma é a 8ª filha de Alex Rafael e Deolinda, que tiveram 10. Alex Rafael foi militar e passou por várias batalhas. Com suas vivências em processos políticos no Paraguai, houve o momento em que decidiu integrar o Partido Comunista e viveu a militância do partido até seus últimos dias.

Soledad nasce num ambiente de perseguição. “O seu pai não está presente quando de seu nascimento (1945), justamente por ter sido sequestrado por um grupo miliciano, um desses esquadrões da morte. Ele fica desaparecido por cerca de um ano. E justamente por isso a mãe escolhe o nome Soledad, por não ter notícias do esposo, sequer saber se ele estava vivo”, conta Ñasaindy. Os irmãos de Soledad também eram envolvidos com a luta política desde a adolescência, no movimento estudantil, e também sofreram prisões e perseguições.

Ainda bebê, com pouco mais de um ano de idade, Soledad passa pelo primeiro exílio (1946). Quando descobrem onde o pai dela está preso, conseguem sua soltura, mas sob a condição de deixar o Paraguai. Então a família cruza o rio Paraná e vai viver na Argentina. Sofreram discriminação por serem migrantes e paraguaios, houve momentos de miséria. E o pai, além de trabalhar, seguia na militância. Na Argentina foi preso por duas vezes. A família ficou no país por cerca de seis anos (até meados de 1952).

Assim que houve uma anistia no Paraguai, a família retornou e pode viver em seu país natal por alguns anos. Mas em 1954 começa a ditadura de Alfredo Stroessner e reiniciam as perseguições aos comunistas. “Soledad via seu pai ser preso e impedido de trabalhar, seus irmãos impedidos de estudar e seguirem suas carreiras. Ela passa por constrangimentos ao visitar seu pai na prisão, mas seguia, porque ela levava informações. Então Soledad acaba bebendo das fontes do avô, do pai e dos irmãos”, diz a filha de Soledad.

Início da militância, estudos e novos exílios

Quando Soledad tinha 16 anos (1961) seu pai é expulso do país e a família é novamente obrigada a se exilar. Desta vez migram para o Uruguai. A família participa de eventos em solidariedade ao Paraguai, que vivia uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. E Soledad estava sempre presente, cantando e dançando, mas também se aproximando da militância do Partido Comunista no Uruguai.

Em 1962 um grupo neonazista sequestra Soledad e usa um objeto cortante para marcar as duas pernas dela com suásticas. Isso acaba impactando a sociedade paraguaia, que começa a perceber as ameaças do anticomunismo. Apesar disso, a polícia uruguaia também passa a intimidar Soledad, questionando seu envolvimento nos eventos.


Soledad sofre sequestro por grupos neonazistas e caso ganha destaque nos jornais / Reprodução

Após o sequestro houve uma grande manifestação para denunciar os ataques. “No jornal saiu foto dela fazendo discurso entre lideranças do Partido Comunista. Ela ganhou visibilidade e isso aumentou a perseguição à família”, conta Ñasaindy. A família envia Soledad para a Rússia, então União Soviética, onde a jovem completou 18 anos de idade (1963). Ela passa pouco mais de um ano estudando política e participando de treinamentos.

Ela retorna – para a Argentina –  decidida a se envolver na luta armada. Soledad atua na região de Formosa, promovendo formação política entre camponeses que atuavam na coleta de algodão. Ela também integrava grupos que tentavam entrar no Paraguai clandestinamente, mas sem sucesso.

As ditaduras forçaram os militantes a mudarem constantemente de país, terem vidas instáveis. Ao mesmo tempo, o Plano Condor articulava as ditaduras sul-americanas e a inteligência estadunidense para exterminar os militantes comunistas que transitavam na América do Sul, entre os quais Ernesto “Che” Guevara, revolucionário argentino morto na Bolívia em 1967. Chegou um momento em que Soledad não tinha mais uma pátria segura. Até uma mordida de cachorro sofrida por Soledad, levando-a ao hospital, representava risco de vida. Para completar, o quadro instável dentro do Partido Comunista Paraguaio faz Soledad e irmãos romperem com o partido e criarem um grupo chamado “Comuneros”. Em 1967, aos 22 anos, Soledad Barrett migra para Cuba.

Vida em Cuba, José Maria, ingresso na VPR e filha

Naquele momento histórico, de “guerra fria” entre Estados Unidos e União Soviética, de ditaduras na América Latina apoiadas pelos EUA e organizações comunistas apoiadas pela URSS, a ilha caribenha – cuja revolução triunfara havia menos de 10 anos – recebia militantes exilados, outros clandestinos que retornariam ao país de origem, assim como militantes que encontravam em Cuba uma preparação teórica e prática para combater as ditaduras no Sul. Mas assim como nas organizações comunistas, também lá havia presença de infiltrados, informantes de forças armadas das ditaduras.

Os militantes chegados de diversos países eram direcionados a trabalhos-militantes, muitos em acampamentos. Ao longo dos anos em Cuba, Soledad contribuiu com a Rádio Havana Cuba, levando notícias para o mundo na sua língua-mãe, o guarani. Ela também foi direcionada a um acampamento onde exerceu forte presença na organização. Lá Soledad também ensinou guarani e conheceu o brasileiro José Maria Ferreira Araújo, apelidado de “Araribóia”, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que estava exilado.

Nascido em Fortaleza (CE), em 1941, José Maria foi ainda muito novo para o sertão da Paraíba, de onde era toda sua família. Sempre sonhou ser marinheiro. Na força armada teve contato com as ideias marxistas e integrou-se à recém-criada Associação de Marinheiros, tendo participado da “Revolta dos Marinheiros”, uma semana antes do golpe de 1º de abril. Passou meses preso e, mesmo após solto, continuava a ser perseguido. Entrou na VPR e, após alguns anos clandestino, foi mandado pela organização para Cuba.


Soledad e José Maria vivem juntos por cerca de dois anos, em Cuba / Reprodução

Soledad e José Maria casam-se em 1968. E em abril de 1969 nasce Ñasaindy Barrett, única filha do casal. E já em 1970 a VPR convoca José Maria de volta ao Brasil. Soledad deixa os “Comuneros” e se junta à VPR. Mas com menos de dois meses no Brasil, em 23 de setembro, Araribóia é preso, torturado e assassinado aos 29 anos pela ditadura militar brasileira. A informação da morte do companheiro chega a Cuba, mas ainda assim Soledad segue o plano traçado com a VPR: em dezembro ela deixa a ilha, passa um ano percorrendo outros países na América do Sul até ser convocada pela VPR ao Brasil, onde só chega nos fins de 1971.

A filha Ñasaindy fica na Ilha. Os pais decidiram deixar a menina com a brasileira Damaris Oliveira Lucena, que chegara a Cuba meses antes. Militante da VPR e companheira viúva de Antônio Raymundo Lucena, Damaris e o marido militavam no Partido Comunista e, após o golpe militar, aderiram à luta armada na VPR. O marido foi morto em confronto no início de 1970, enquanto ela e as crianças foram presas por cerca de um mês, ela torturada. Mas a VPR sequestra o cônsul japonês no Brasil e, em troca do oriental, consegue a soltura da família de Damaris. Ela se exila no México e logo em seguida em Cuba, com suas três crianças, às quais se juntou Ñasaindy – esta que nos detalha a história.

A vida em Olinda, o Cabo Anselmo, traição e morte

Uma das lideranças da VPR era o sergipano José Anselmo dos Santos, que utilizava o nome “Daniel”. Ele fora presidente da Associação de Marinheiros, principal líder da “Revolta dos Marinheiros”, amigo de José Maria “Araribóia” Ferreira e também passara por Cuba. Ele, no entanto, era o “Cabo Anselmo”, um infiltrado a serviço dos militares.

José Anselmo “Daniel” solicita à organização a abertura de um núcleo da VPR em Pernambuco. E pede que Soledad seja designada para a tarefa junto a ele, o que é autorizado pela VPR. “Nos documentos de Anselmo há um intitulado ‘Relatório de Paquera’, trazendo detalhes sobre sua aproximação com Soledad e seu convencimento da VPR para que fossem liberados os recursos necessários (para aluguel de apartamento, por exemplo) para iniciar o núcleo”, nos conta Ñasaindy.


Soledad com o músico uruguaio Daniel Viglietti, numa das passagens dela pelo Uruguai; ele compôs uma música para ela quando de sua morte / Reprodução

Convocada pela VPR, Soledad chega ao Brasil – usando seu nome legítimo –  no fim de 1971, passando por São Paulo e, em seguida, Olinda (PE). Vivendo no bairro de Rio Doce, o casal tinha a tarefa de atrair outros militantes para a VPR. “Daniel” trabalhando como fotógrafo e Soledad como artesã, tendo uma loja de artesanatos em Olinda chamada “Boutique Mafalda”, no centro histórico. Os militantes convencem a VPR a comprar um sítio rural em Abreu e Lima, a Chácara São Bento, onde a organização poderia ter encontros com maior discrição. Passaram a viver no local o casal de militantes Eudaldo Gomes e Pauline Reichtul, psicóloga tcheca.

Com o tempo o relacionamento de fachada se torna real e Soledad engravida. Em janeiro de 1973 a direção nacional da VPR comunica ao núcleo de Pernambuco que estes haviam sido descobertos pelos militares e precisava ser desmanchado. Anselmo e Soledad iriam para o Chile. A principal liderança local, Anselmo, ficou responsável por organizar o desmanche, mas não sem antes preparar a captura dos companheiros. Em 8 janeiro de 1973, dois dias após completar 28 anos e com 4 meses de gravidez, Soledad e outros camaradas da VPR são vítimas da traição do Cabo Anselmo.

Na ação de desmanche do núcleo, Soledad (28) e Pauline (25) são deixadas por Anselmo numa loja, em Boa Viagem, onde foram cobrar o dinheiro por peças produzidas por Soledad. Anselmo (31) segue de carro com Eudaldo Gomes (25), com o cunhado Jorge “Mitaí” Barrett (21). Anselmo deixa Eudaldo num hotel para trocar dólares e segue com Jorge para um bar, onde supostamente aguardariam os outros. Em seguida, Anselmo levanta e sai, dizendo ter visto um amigo na rua, mas era uma deixa para a entrada dos militares.

O delegado Sérgio Fleury captura Jorge no bar, o leva até a Câmara de Comércio de Pernambuco, onde trabalhava a esposa de Jorge, a pernambucana Maria Dilênia Valença, que também foi capturada. Soledad e Pauline foram pegas e espancadas por policiais já dentro da loja em que foram cobrar pagamento. Foram transportadas num camburão do Incra. Eudaldo Gomes foi preso na casa de câmbio. Um outro companheiro, Jarbas Pereira Marques, foi preso na livraria Moderna, onde trabalhava. José Manoel da Silva é detido num posto de gasolina. E Evaldo Luiz Ferreira de Sousa foi preso na casa de Soledad e “Daniel”.

Todos foram espancados e torturados naquele mesmo dia. Em seguida os policiais levaram todos, com exceção do casal Jorge Barrett e Dilênia Valença, até um sítio em Abreu e Lima (há controvérsias se seria a mesma granja da VPR ou outro local) e simularam um tiroteio. A chegada dos presos, amarrados, foi vista por vizinhos. Os militantes foram executados com tiros na cabeça, no que ficou conhecido como “chacina da Chácara São Bento”. Nos jornais do dia seguinte foi publicada a versão dada pela polícia: tiroteio acaba em morte de seis militantes comunistas. Os militares envolvidos nas capturas e mortes foram enviados de outros estados, a exemplo de Sérgio Fleury (DOPS-SP) e Rubens “Laecato” Gomes Carneiro (Exército-RJ).


Imprensa comercial de Pernambuco reproduzia mentiras oficiais da ditadura militar / Reprodução

Apesar de os laudos do IML mentirem, submetidos ao Exército, as fotos revelam as marcas de amarrações e torturas, assim como as balas na cabeça, anulando a possibilidade de tiroteio. “Apesar de os militares saberem exatamente quem eram os militantes e seus nomes verdadeiros, Soledad Barrett Viedma e os outros cinco militantes mortos na chacina foram enterrados numa vala coletiva do Cemitério da Várzea, como indigentes, para dificultar a localização por parte dos familiares”, conta a filha Ñasaindy. Ainda assim, a família de Pauline Reichtul foi ao cemitério no dia seguinte e resgatou o corpo da tcheca.

A família Barrett durante muitos anos entrou em contato com o poder público brasileiro na tentativa de localizar o corpo de Soledad, “mas a ditadura nunca lhes deu resposta positiva”, diz a filha. Muitos dos irmãos estavam presos, outros clandestinos, enfrentando suas lutas contra regimes ditatoriais noutros países. A missão para a família, além de dolorosa, era difícil de operar naquelas condições.

O paradeiro de Soledad seguiu como incerteza até o início dos anos 1990, até o momento em que se começou a abrir os arquivos. A filha Ñasaindy, com vinte e poucos anos, veio ao Recife em busca de informações e teve dificuldades com o poder público. “Fomos atrás de documentos no IML e seguimos direto para o cemitério da Várzea. No livro do cemitério, no dia 9 de janeiro de 1973, lá estavam vários corpos enterrados como indigentes e, entre eles, o nome de Soledad Barrett”, diz Ñasaindy. Mas após tanto tempo as terras haviam sido movidas e os restos mortais de Soledad nunca foram localizados pela família.

O pai de Ñasaindy e primeiro companheiro de Soledad, José Maria Ferreira Araújo, o “Araribóia”, morto em setembro de 1970, foi enterrado com o nome de Edson Cabral Sardinha no cemitério da Vila Formosa (SP). “Essas descobertas se deram apenas em 1990. Quando da descoberta, o corpo já havia sido removido e já não se podia localizar seus restos mortais para que a família realizasse seu funeral. Existe a possibilidade de que os restos mortais tenham sido, em algum momento, transferidos para uma vala coletiva no Cemitério de Perus”, conta a filha. Até hoje Araribóia não foi localizado.

Onde estão

A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) acabaria por se dissolver em março de 1973, sofrendo com infiltrados, mortes e cisões internas.

Durante toda a vida Soledad não perdeu o contato com sua família. Seu irmão Jorge “Mitaí” Barrett era seu “pombo correio” e estava sempre levando e trazendo cartas entre irmãos, divididos entre tantos países. A família de Soledad acabaria por precisar se exilar novamente, em 1973, migrando para a Venezuela.

Maria Dilênia Valença Barrett foi solta após algumas semanas e, com ajuda da advogada Mércia Albuquerque, casou-se formalmente com Jorge enquanto ele ainda estava preso, garantindo-lhe cidadania brasileira. Ela viveu grande parte da vida no bairro de Jardim Brasil, Olinda, mas hoje mora em Curitiba (PR).

Jorge Barrett passou meses detido e recorda, em depoimento à Comissão da Verdade de Pernambuco, que na prisão houve policiais que lhe disseram que dentro do Plano Condor a captura de militantes com passagem por Cuba rendia premiações financeiras no valor de US$ 45 mil aos militares, que na época dava para adquirir 9 carros novos. O objetivo dos militares era que a operação em Pernambuco atingisse mais militantes, mas a carta da VPR alertando que o núcleo precisava ser desfeito impediu uma quantidade maior de mortes.

Quando em São Paulo, Jorge escutou militares conversando sobre serem enviados para atuar no Chile, que tinha um governo socialista, de Salvador Allende. Jorge compreendeu o que se articulava. Jorge foi transferido para São Paulo e, em julho 1973, mandado ao Rio de Janeiro, de onde oficialmente expulso do país, colocado num avião rumo ao Chile, onde vivia uma irmã, Nani. No país andino, semanas após sua chegada, teve um encontro com o presidente Allende e compartilhou o que ouvira no Brasil, mas o mandatário não considerou que aquilo fosse uma possibilidade real. Menos de dois meses depois, o golpe ocorre. Jorge e a irmã foram encontrar a família na Venezuela.

Após o assassinato dos militantes, o Cabo Anselmo desapareceu temendo ser morto pelos comunistas. E ganhou uma ajuda dos militares: foi dado oficialmente como morto, apesar de nunca terem encontrado seu corpo. Mas em 1984 concedeu uma entrevista à revista Istoé, eliminando as desconfianças sobre sua morte. Ainda deu entrevista ao Roda Viva (2011). Segue vivo, aos 79 anos, reivindicando uma indenização pela “Comissão da Anistia” e uma aposentadoria como militar.

Ñasaindy Barrett e a busca por Soledad

O nome de origem guarani tem pronúncia “nha-saind”. Nascida em Havana, em 1969, Ñasaindy passa com Soledad menos de dois anos. Viveu com sua outra mãe, Damaris Oliveira Lucena, em Cuba até pouco depois da Lei da Anistia no Brasil (1979). Com 11 anos de idade, em abril de 1980, Ñasaindy, Damaris e os filhos vêm para o Brasil. O filho mais velho de Damaris estava preso político aqui. Para saírem de Cuba, a única forma era Ñasaindy ser registrada como filha legítima de Damaris, o que foi feito. A família foi para São Paulo, onde Ñasaindy viveu até os 22 anos (1991).

“Por dezesseis anos, até 1996, eu tive uma vida quase clandestina no Brasil, porque eu não tinha documentação. Eu sabia de quem eu era filha e queria levar o nome dos meus pais. Tinha medo de fazer um documento com o nome da Damaris e mais adiante ela ser punida por falsidade ideológica ou algo do tipo”, recorda Ñasaindy Barrett, que só veio ter identidade e CPF aos 26 anos de idade. “Isso me impediu de terminar os estudos, ter uma formação. Parei de estudar com 16 anos, na 8ª série, que era o máximo que podia ir só com a certidão de nascimento. Após isso precisava de RG”, conta ela. Isso em meados de 1985.

“Também não consegui arranjar emprego, ter uma carreira. Me envolvi com a vida artística fui modelo por alguns anos (em SP). Mas era tudo difícil, porque eu não tinha nem RG. Foi bastante complexo. Me tornei artesã, que era a forma que consegui me manter por seis anos em Florianópolis (SC). Me considero uma arteira e uma sobrevivente”, diz a filha de Soledad. “Mas durante este período constituí família. Tive quatro filhos, sendo a mais nova em 1998”, conta Ñasaindy.

Duas décadas depois, em 2005, ela retomou os estudos, fez um supletivo, entrou na universidade aos 39 anos de idade (2008). “Me formei em Pedagogia aos 42 anos e acabei de entrar na universidade novamente, porque eu quero continuar estudando”, conta a cubana, recém aprovada em Licenciatura em Dança na UFPB. Ela hoje vive em Olinda.


Soledad Barrett em 1962, aos 17 anos, antes de ir para a União Soviética / Reprodução

A cubana avalia que por volta dos 21 anos de idade começou a fazer um retorno às suas raízes, para se reencontrar. “Eu não tinha uma identidade no papel, mas também não tinha uma identidade biológica. Nasci em Cuba, de repente estava no Brasil, um país capitalista, com outra lógica, poucas oportunidades. Na minha adolescência ainda era ditadura (até 1985) e era difícil sonhar. Acho que só uma década depois a sociedade começou a querer falar sobre essas coisas”, lembra Ñasaindy.

Foi nesse processo de redemocratização e busca pela verdade que ela pode conhecer melhor Soledad e seu pai, José Maria. Também pode conhecer suas famílias por parte de pai e de mãe, viajar na América do Sul para conhecer os familiares. “Muitas das informações fui coletando através de conversas com irmãos dela, que atuaram junto na militância, e com companheiros de luta que também a conheceram”, conta a filha.

“Tenho 52 anos, há mais de 30 estou ‘colando caquinhos’, pixels, que formam essa imagem e ajudam a compor essa trajetória e permitem compreender alguns aspectos dela. Sempre que alguém me procura para que eu dê meu testemunho, falar o que eu sei, acho que eu também acabo me conhecendo melhor”, diz Ñasaindy.

“A minha relação maternal sempre foi o principal motivo que me levou a querer conhecer a mulher de cujo ventre eu nasci e sobre a qual tinha tão poucas informações. Foi um processo longo de pesquisa e investigação que segue até hoje. Essa relação acabou se tornando de muita admiração e respeito pela guerreira e guerrilheira Soledad, que representa muitas mulheres daquele tempo e que a antecederam e que se entregou de corpo e alma à luta por melhores condições de vida para todos e todas”, conclui.

Edição: Vanessa Gonzaga