Enquanto houver sistema capitalista, pessoas viverão em situação de fome no mundo inteiro
No Brasil, a fome é uma política. Ela é sistemática e nos persegue. O fato de que enormes camadas da população brasileira não tenham o direito de prover a sua própria subsistência e de seus familiares de forma autônoma e autogerida sugere que o processo de colonização, a partir do tráfico e deslocamento de pessoas de um continente a outro e escravização realizada nas bandas de cá, constituiu um tipo de relação que ao mesmo tempo em que perpassava a produção de riquezas do país, instituia relações de heteronomia no que se refere a necessidades básicas, tais como o local de moradia e as condições para prover necessidades básicas à manutenção da vida, tais como a alimentação.
Recentemente, Luiza Batista Pereira, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, em entrevista acerca do dia nacional desta categoria estampou a seguinte frase: “Não queremos ser da família”. Dentre algumas das imagens de controle que circundam o imaginário acerca da representação das mulheres negras brasileiras, constantemente reavemos a da “mãe preta”. Ao redor dessa imagem se desenrola uma narrativa que opera no sentido de que para que as trabalhadoras domésticas possam acessar algumas situações que, em tese, não conseguiriam por si mesmas dentro de suas trajetórias profissionais, o fariam a partir de suas relações com as “casas-grandes”. Um teto sob o qual dormir, sob a alegação de que não precisaria gastar pagando um aluguel e levar os filhos para o local de trabalho, o que muitas vezes significa o início do ofício de trabalhadoras desde a infância; acesso a bens de consumo que as família contratantes consideram como dispensáveis ao seu próprio uso.
A alimentação e a moradia, nestes casos, não parecem configurar direitos básicos que deveriam ser acessados pelas massas que ao longo da nossa história foram marginalizadas. Ganham a aparência de caridade, em relações de poder e prestação de serviços mal ou não remunerados.
O processo de assalariamento e o debate acerca da proteção social da classe trabalhadora é também terreno para a descoberta científica da fome, a qual ocorreu aqui no Brasil entre os anos de 1937-1945. Assim como sobressaiu uma política de combate no contexto mundial e brasileiro, no período de 1946-1963, surgindo as primeiras organizações não governamentais de combate à fome. Ao longo do século XX, principalmente a partir da década de 1930, podem ser caracterizados quatro principais períodos em que foram construídos programas de combate à fome. Os períodos destacados por pesquisadores da área são: 1930-1963; 1964-1984; 1985-2003 e 2003-2016.
Durante os anos de 1930-1963, ao mesmo tempo em que foi instituído o salário mínimo, as primeiras leis trabalhistas, deslancharam os processos de urbanização e industrialização foi constatado que o perfil epidemiológico brasileiro se caracterizava pela elevada ocorrência de doenças nutricionais relacionadas à miséria, pobreza e atraso econômico. O discurso do combate à fome reaparece no cenário nacional durante a campanha das Diretas Já. Daí em diante se desenvolve a implementação de intervenções nutricionais governamentais tendo como principais categorias discursivas a solidariedade, parceria, descentralização e segurança alimentar.
É possível constatar a descontinuidade e alternância entre as agências condutoras da política de alimentação e nutrição, assim como a instabilidade institucional da política social de alimentação e nutrição no país. Além disso, é perceptível que existe uma relação entre programas criados pelo estado, campanhas gestadas pela sociedade e uma série de relações entre uma coisa e outra.
Assim como entre a caridade como método de conservação das coisas como estão, a partir do paternalismo e do reforço que as personagens envolvidas mantenham-se onde estruturalmente estão, de modo a não haver mobilidade social. Muitos dos programas de combate à fome e miséria articulados a nível mundial tiveram desdobramentos no país, no sentido de controle e mesmo combate de ideias progressistas que se expressavam em movimentos sociais à época. A caridade como contenção.
Dentre as iniciativas de solidariedade construídas de forma a discutir política e historicamente as razões da fome, a fim de acabar com esta mazela, a Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e Pela Vida, lançada em 1993 foi a mais duradoura, sobrevivendo até os dias atuais. O número de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza naquela época – 32 milhões – foi um dos principais instrumentos usados para fomentar o debate público em torno da questão. “A fome é exclusão. Da terra, da renda, do emprego, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado”, declarou Betinho à época.
No período recente de governos progressistas, a ampliação do Fome Zero, a criação do Bolsa Família, outros vários programas que estiveram articulados e operaram de forma conjunta através do CadÚnico foi a primeira experiência enquanto política de estado que obteve considerável melhoria nos índices sociais relacionados à qualidade de vida da população. Dentre outros indicadores, dados do IBGE mostram que a pobreza no Brasil caiu de 42 milhões de pessoas em 2003 para 14 milhões em
2013. Em relação à desigualdade de renda e acesso a cargos profissionais entre negros e brancos, mulheres e homens, mesmo que pequena houve uma significativa redução. Além de efetiva, foi a primeira vez que a política de distribuição de renda, combate à fome, miséria e desigualdades sociais aconteceu de forma contínua, ao longo dos governos Lula e Dilma.
Desde o golpe parlamentar em 2016, toda esta construção relacionada às políticas de alimentação, nutrição, trabalho, renda e às demais políticas sociais foram interrompidas. Desde lá, nesta quebra de braço histórica entre direito (conquista) versus caridade (favor), o conservadorismo vem crescendo e o rebaixamento das condições de luta e reivindicação da classe trabalhadora, tendo em vista a retirada de direitos, o aumento do desemprego, a desvalorização do salário mínimo tem sido uma dura e cotidiana realidade.
Enquanto houver sistema capitalista, pessoas viverão em situação de fome no mundo inteiro. No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, assim como em outros lugares que estiveram enquanto colônias de países de capitalismo central, a situação parece não escandalizar justamente por parecer fazer parte da nossa origem enquanto nação voltada para atender as necessidades externas. De acordo com dados do IBGE, foram produzidas mais de 240,7 milhões de toneladas de alimentos no ano de 2019. Ao mesmo tempo em que milhões de pessoas não têm o que comer.
O problema da fome no caso brasileiro não é algo ocasional ou específico de momentos de crise. Por óbvio, tais momentos agudizam e ampliam esta dramática situação. Em nossa realidade, mesmo em contextos considerados de desenvolvimento e crescimento econômico, amplas camadas do povo viveram em um Brasil “atrasado” marcado pela miséria, ausência de direitos básicos relacionados às condições de moradia, saneamento, água, energia elétrica, transporte, educação, saúde, trabalho e renda.
Como disse Carolina Maria de Jesus, “A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”. Neste país, a fome continua sendo preta.
Sonhamos viver um tempo em que sejam levadas em conta as vidas, as suas histórias, contribuição e trajetórias. Por quanto tempo ainda para ter a existência atestada será preciso morrer?
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal
Edição: Vanessa Gonzaga