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CULTURA

O que tu indica? | Abusado

A obra que tem como objetivo contar a história de Marcinho VP do morro Dona Marta, no Rio de Janeiro

Brasil de Fato | Recife (PE) |
O livro de 560 páginas guarda quatro anos de pesquisa do jornalista Caco Barcellos - Pedro Pacífico

No mês em que aconteceu a chacina no Morro do Jacarezinho, a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, que deixou 28 pessoas mortas, indicamos o livro escrito por Caco Barcellos “Abusado”. 

 “Subi a Santa Marta com a curiosidade de quem queria conhecer o lugar de maior concentração de pessoas do Rio de Janeiro, talvez do Brasil, talvez do mundo. O espaço de 61.000 metros quadrados ocupado pelos barracos era relativamente pequeno, do tamanho da famosa Cinelândia, no centro da cidade. Mas em número de moradores era proporcionalmente três vezes maior que a favela do morro do Borel. E superava até a gigante Rocinha, maior favela da América do Sul. Os números frios da estatística me ajudaram a entender, nas primeiras visitas, a sensação de falta de ar, de aperto, num lugar onde pessoas vivem literalmente oprimidas pela falta de espaço.” 

Este é o cenário do primoroso livro-reportagem escrito por Caco Barcellos publicado em 2003, podendo ser lido como um romance, “Afinal toda memória é recriação, invenção e se faz de tênues vislumbres e estilhaços de tudo o que vimos e ouvimos” como nos indicou Natalia Ginzburg. A obra que o objetivo contar a história de Marcinho VP do morro Dona Marta nos traz a construção do espaço, seus moradores, das gerações do crime no Rio de Janeiro e suas ligações com políticos. 

O livro de 560 páginas guarda quatro anos de pesquisas, entrevistas dentro e fora do país, mas também muitas ameaças ao jornalista e um tanto de desconfiança como nos conta no posfácio. Caco Barcellos após ter escrito “Revolução das Crianças” livro reportagem sobre a revolução Nicaraguense e “Rota 66 – História da polícia que mata” uma investigação sobre a polícia militar em São Paulo, é convidado pelo próprio Marcinho VP - Juliano, no livro – para escrever sua história. O autor concordou desde que não soubesse de seus crimes futuros, apenas sobre sua trajetória passada, para não ser cúmplice de seus atos. Apesar de revelar aspectos cômicos e humanizados de Marcinho VP, o livro não deixa de expor sua conduta no crime, inclusive submetendo a tortura seus adversários, o abandono de seus filhos e de suas várias esposas e namoradas. Não se trata de forjar um herói, mas de dar a conhecer um personagem intrigante e contraditório.

Os escritos nos permitem saber a história do Morro Santa Marta - ou Dona Marta -, onde a grande quantidade de moradores são nordestinos que saem de sua terra em busca de emprego no Sudeste, como a própria família de Marcinho, cujo pai é cearense. A importância da Igreja Católica quando Dom Helder Câmara e Padre Velloso organizam os moradores para implementação dos primeiros sistemas para levar água potável para o morro Dona Marta nos remete ao abandono do Estado, a falta de políticas públicas, acarretando a falta de oportunidade, esses fatores tão estruturantes na vida dos marginalizados pela sociedade. Por isso, antes de começar a ler, é importante compreender as contradições. Em nota nas primeiras páginas o autor escreve: “A experiência reforçou meu repúdio à cultura da punição perversa, contra quem já nasceu condenado a todas as formas de injustiças”. 

É possível enxergar fatos interessantes e um tanto cômicos. Um deles é a visita do então governador Brizola, que cumprindo suas promessas de campanha, foi homenageado de uma forma não tão usual. O produto mais caro vendido pelo tráfico, a cocaína, teria agora um novo apelido. Os moradores contam que facilmente escutava-se os vapores gritando: “Briza é 10!”, “Brizola na cabeça!". Outra particularidade muito enfatizada no texto é o nome do fuzil carregado pelo chefe: “Jovelina”, fazendo alusão a cantora Jovelina Perola Negra que cantou na comemoração de Marcinho pela “conquista” do morro.

A passagem de Dom Helder Câmara e do Padre Velloso influenciou uma geração de jovens da comunidade. Juliano, como o autor escolheu chamar o personagem principal do livro, era um leitor assíduo de filosofia, sociologia. Tinha Che Guevara como uma grande referência e pretendia treinar guerrilha com os Zapatistas. Características incomuns e que não eram bem vistas dentro do mundo do crime, o que torna sua morte muito mais surpreendente e simbólica. 

É um livro de folego, com um esforço cronológico imenso, já que a maioria das informações são depoimentos de moradores do Morro Santa Marta, do próprio Marcinho e jornais da época. Sem diários, cartas de infância, adolescência ou álbum de fotografias. 

Um rigor com a verdade que impressiona, assim como sua “coragem de dizer” o que realmente aconteceu durante os dias de estada de Michael Jackson no Brasil gravando o clipe “They Don't Care About Us” gravado em 1996, no Morro Dona Marta. A segurança foi toda feita pelos moradores do Morro e nesta época Juliano já era conhecido como Dono da favela. Esse acontecimento e uma entrevista para o jornal O Globo e O Dia, deixariam Juliano conhecido nacionalmente. 

Obra dilacerante que se lê como quem quer conhecer e desbravar o desconhecido. Como o próprio autor diz, é uma obra escrita para quem mora em Ipanema, Leblon e Copacabana, porque os moradores de Dona Marta já conhecem essa história, assim como os moradores de Jacarezinho. Precisamos reaprender a aprender. E jamais confiar em narrativas únicas. A história desse livro nos ajuda a compreender que a mídia hegemônica pode criar grandes figuras, sendo verdade ou não. Escutemos mais, estudemos e questionemos, tudo isso para construção de uma sociedade mais justa.

*Louise Xavier é estudante e militante do Levante Popular da Juventude

 

Edição: Vanessa Gonzaga