No início de maio, o jornal Estado de S. Paulo teve acesso a documentos que revelam que o Governo Federal, através do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), disponibilizou R$3 bilhões num “orçamento paralelo” para deputados e senadores destinarem a ações em suas bases, apesar de isso não ser especificado na Lei Orçamentária. A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), órgão federal com atuação no interior de Pernambuco, recebeu R$459 milhões dessa verba. O braço da companhia no estado é comandado pelo senador Fernando Bezerra Coelho (MDB). Empresas ligadas a ele também receberam recursos.
O “orçamento paralelo” do MDR teve como principais destinos ações de “desenvolvimento urbano” (como requalificações de calçadas e vias urbanas) e ações de “desenvolvimento local integrado”, voltado para zonas rurais (pavimentação de vias de barro ou aquisição de tratores, por exemplo). Os 101 ofícios obtidos pelo jornal Estado de S. Paulo mostram 37 deputados e cinco senadores interferindo nesse orçamento. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, pediu R$30 milhões para o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) para aquisição de 44 tratores agrícolas. O superfaturamento nesta compra ultrapassa R$1,5 milhão.
Só de compra de equipamentos de grande porte foram R$271,8 milhões. Muitos pedidos parecem superfaturados, como a compra de tratores com valor de R$359 mil a unidade, quando o preço comum do trator é em torno de R$100 mil. Foram 115 tratores adquiridos, dos quais apenas 12 estão com preço dentro do normal. A soma dos tratores chega a R$15 milhões. Segundo a reportagem, foram 361 itens superfaturados. A “tabela de preços” considerados dentro do normal é definida pelo próprio Governo Federal e ainda assim não foi respeitada. Mais de 80% do orçamento previsto para compra de máquinas foi gasto com compras superfaturadas. Esses equipamentos são repassados a prefeituras ou associações rurais.
Para completar, R$2 bilhões foram repassados a empresas, entre as quais muitas ligadas a políticos. Uma investigação foi aberta pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido do subprocurador Lucas Furtado, para investigar o uso desses R$2 bilhões.
A concessionária Mavel Máquinas e Veículos Ltda, revendedora de veículos da Mercedes Benz, é sediada em Petrolina (PE) e tem lojas em Arcoverde (PE), Juazeiro (BA) e noutros estados. A Mavel tem como sócio Caio Bezerra de Souza Coelho, irmão do senador Fernando Bezerra. E segundo reportagem da Revista Crusoé, justamente Fernando Bezerra enviou o ofício pedindo a aquisição de uma van, comprada pela Embrapa no valor de R$205 mil junto à concessionária de seu irmão.
A Tratormaster Tratores, Peças e Serviços Ltda, com sede em Salvador (BA), tem três sócios, entre os quais Marco Antônio Coelho de Carvalho, que além de empresário é procurador municipal na Prefeitura de Juazeiro (BA), a uma ponte de distância de Petrolina. A Tratormaster vendeu R$1,5 milhão em retroescavadeiras para a Codevasf. A concessionária de caminhões HGV Veículos, pertencente a Hugo Bezerra Gurgel Neto, vendeu R$10 milhões em veículos para a Codevasf. Foram firmados 19 contratos entre a companhia e a HGV nos últimos seis meses.
Ainda segundo a Crusoé, outra empresa que tem ligação com a família Bezerra Coelho é a Liga Engenharia Ltda. Fundada em 2012 e com sede em Salvador (BA), a empresa de construção civil obteve seu primeiro contrato com o órgão federal em 2019, mas desde então já recebeu R$53 milhões e tem mais R$5 milhões garantidos por contrato. A Liga é frequentemente contratada pela Codevasf para manutenção de vias em Petrolina. Ela recebeu R$28 milhões de repasse via Codevasf e Dnocs só nos últimos seis meses. A maioria dessas empresas são registradas como de médio porte, com faturamento previsto entre R$20 milhões e R$50 milhões por ano.
O Brasil de Fato Pernambuco entrou em contato com a Codevasf, questionando sobre a compra de equipamentos por valores acima da tabela, dispensa de licitação e contratos com empresas da família Coelho. Sobre os valores dos equipamentos, a empresa pública menciona o custo transporte do maquinário e argumenta que o aumento do preço do aço tem impactado no preço das máquinas.
“Dentre os fatores que exercem influência sobre valores de bens adquiridos pela Codevasf estão: localidades beneficiadas, fretes, impostos, quantidades previstas em Atas de Registro de Preços e custo de insumos. Veículos de comunicação têm noticiado, por exemplo, a influência da alta do preço do aço sobre os preços de máquinas”, diz a Codevasf em nota enviada à reportagem. A Companhia menciona um impacto de até 50% nos valores.
Sobre os valores, o MDR emitiu nota em seu site afirmando que “o preço de referência não existe” e que a cartilha de preços consultada é de 2019, antes do impacto da pandemia sobre os custos. A nota afirma ainda que quem faz a pesquisa de preços e licitação para as compras, neste caso, são os municípios. “Qualquer irregularidade porventura detectada será encaminhada para órgãos de defesa do Estado”, pontua. A nota do MDR também afirma que parlamentares de oposição ao governo também tiveram solicitações contempladas pela “RP9”.
Sobre a aquisição do maquinário, a Codevasf afirma fazer tudo através de licitações e com transparência. “As contratações da Codevasf são precedidas de processo licitatório, com critérios definidos em editais, termos de referência e na legislação, (...) realizados pelo site oficial de Compras do Governo Federal (Comprasnet)”, diz a nota enviada ao BdF Pernambuco. Outra nota do órgão pontua todas as compras mencionadas.
Sobre as compras realizadas junto a empresas da família Coelho, a Codevasf afirma que os critérios de seleção das empresas são definidos por lei e constam em editais. “Relações sociais ou familiares de sócios de empresas participantes desses procedimentos são desconhecidas e não integram o rol de critérios de classificação ou desclassificação”, conclui.
O Brasil de Fato Pernambuco também entrou em contato com o gabinete do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB), apresentando questionamentos, mas até o fechamento desta matéria não fomos respondidos. Em entrevista recente ao programa televisivo Roda Viva, Bezerra Coelho tentou minimizar a situação. “Não há nada mais velho que isso. De secreto [o orçamento] não tem nada. Todo crédito extraordinário é votado e debatido no Congresso. Ninguém inventa rubrica orçamentária”, afirmou. “Acho muito difícil isso virar tema de preocupação do Governo Federal”, completou Coelho.
Ainda na entrevista, o senador pernambucano elogiou as compras feitas com o orçamento paralelo. “Esses tratores agrícolas custam no máximo R$100 mil e são importantes para arar a terra no semiárido do Nordeste, onde muitos agricultores ainda usam a tração animal”, argumentou, deixando intencionalmente de lado que a maior parte dos equipamentos foram adquiridos por valores superfaturados.
Questionado sobre a Codevasf estar aplicando recursos em estados da federação que sequer fazem parte da sua área de atuação, Bezerra Coelho justificou que é consequência da junção dos ministérios das Cidades e da Integração Nacional, que originaram o MDR. “A Codevasf [antes submetida à Integração] passou a ser o instrumento operador desse novo ministério, para executar as políticas públicas. Por ser uma empresa pública de excelência, ela é demandada por todo o Congresso Nacional para operar as políticas não só de irrigação, mas também de mobilidade urbana”, disse ele.
FBC também avalia que o órgão deve sofrer mudanças em breve. “Nós devemos acabar com a Codevasf como foi concebida, para torná-la a executora das políticas públicas desse ministério. A tendência é virar empresa de caráter nacional para atuar em todo o território brasileiro”, palpitou. Questionado sobre seus tentáculos no órgão – assim como na Chesf –, FBC defendeu seus amigos. “Não podemos criminalizar as indicações políticas. Esses nomes passam por um escrutínio dos órgãos competentes para avaliar se têm qualificação técnica e experiência para exercer esses cargos públicos. Não vejo nada de irregular”, finalizou.
Os Coelhos e a Codevasf
A Codevasf atua em nove unidades federativas, sendo seis estados na região Nordeste (Pernambuco, Bahia, Alagoas, Sergipe, Piauí e Maranhão), dois no Centro-oeste (Goiás e Distrito Federal) e um no Sudeste (Minas Gerais). A Companhia é comandada internamente por executivos indicados por políticos aliados de Bolsonaro, entre os quais o pernambucano Fernando Bezerra Coelho (MDB), líder do governo Bolsonaro no Senado.
Uma das superintendências regionais da Codevasf fica em Petrolina, sertão de Pernambuco. E o chefe desta 3ª superintendência é Aurivalter Cordeiro, indicado ao cargo por Bezerra Coelho e nomeado pelo então vice-presidente Michel Temer (MDB) em julho de 2016, pouco antes de a presidenta Dilma Rousseff (PT) ser afastada em definitivo da Presidência da República.
Aurivalter Cordeiro é engenheiro civil, nascido em Cabrobó, servidor público do estado de Pernambuco e ocupou cargos de confiança a nível estadual e federal, sempre levado por Fernando Bezerra Coelho. As alianças do senador garantiram a manutenção do aliado na superintendência apesar das mudanças de governo.
Bezerra Coelho é líder do “clã” que há mais de 100 anos domina a política em Petrolina (PE), maior município da região do Vale do São Francisco. Além do patriarca, que tenta reeleição para o Senado em 2022, estão na política os herdeiros Fernando Coelho Filho (DEM), deputado federal; o deputado estadual Antônio Coelho (DEM); e o prefeito de Petrolina, Miguel Coelho (MDB), cotado para uma candidatura ao Governo do Estado. Os irmãos de Fernando Bezerra são bastante influentes no estado da Bahia.
FBC também pediu que R$125 milhões do “orçamento paralelo” ficassem como caixa da Codevasf. O deputado federal Fernando Bezerra Coelho Filho (DEM) também aparece entre os que solicitaram verbas do “orçamento paralelo” para a Codevasf.
Apesar de não integrar oficialmente o grupo de 11 senadores na CPI da Covid, Fernando Bezerra Coelho é o principal articulador da “tropa de choque” governista que tenta defender Bolsonaro na CPI.
Entenda o que é o “orçamento paralelo”
Ao fim de cada ano o Governo Federal envia para o Congresso Nacional a Lei Orçamentária (LOA) que define o uso dos recursos federais para o ano seguinte. Nas LOAs sempre há emendas parlamentares, que são pedidos dos deputados e senadores para destinação de recursos para uma atividade específica. Por exemplo: na Infraestrutura, uma emenda que destine recursos para a manutenção da BR-232 no trecho que vai de tal a tal município; na Saúde, uma emenda que garante a construção de um posto de Saúde num município específico. Cada deputado federal pode “manejar” até R$8 milhões de todo o orçamento federal.
Mas o parlamentar que faz o texto final da Lei Orçamentária (LOA), o relator, também pode colocar outras emendas, as chamadas “RP9”. Mas estas não podem ser tão específicas como as outras. Elas devem corrigir possíveis incompatibilidades do orçamento e fechar quantos milhões ou bilhões de reais serão destinados a cada área do Governo Federal. Desde o primeiro orçamento produzido pelo governo Bolsonaro – a LOA 2020, produzida em dezembro de 2019 – os valores movimentados pelas emendas do relator estão acima do comum. Isso se repetiu na LOA de 2021.
O esquema teria sido autorizado explicitamente em novembro de 2019, quando o hoje ministro da Casa Civil, general Luiz Eduardo Nunes, ocupava a Secretaria de Governo e enviou ao relator da LOA uma sugestão de emenda “RP9” criando o orçamento sem uso definido que seria apelidado de “orçamento secreto”, a ser negociado com parlamentares.
O jornal Estado de S. Paulo revela que entre os recursos definidos pelo relator está uma “sobra” de R$3 bilhões no orçamento do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), sem destinação especificada na LOA. No entanto, em dezembro de 2020, às vésperas da eleição dos presidentes do Senado e da Câmara Federal, o recurso foi destinado a finalidades definidas por deputados e senadores que enviaram ofícios ao ministério, mas sem deixar claro que a destinação era em resposta aos pedidos. Por isso o esquema tem sido chamado de “orçamento secreto” ou “orçamento paralelo”. O jornal teve acesso justamente a esses documentos enviados pelos parlamentares ao MDR, indicando o destino dos recursos para as compras.
A medida é uma forma evidente de beneficiar alguns parlamentares com “emendas extras” para aplicarem em suas bases. Eles escolhem ações em municípios com prefeitos aliados e, assim, podem garantir a reeleição desses deputados e senadores em 2022. Também há a suspeita de que os recursos tenham servido para “comprar voto” desses parlamentares, para que estes votassem nos candidatos apoiados por Bolsonaro na disputa das presidências da Câmara e do Senado. Em janeiro de 2021 o Governo Federal teve sucesso, já que o Congresso elegeu dois aliados de Bolsonaro para a presidência das casas: Arthur Lira (PP-AL) na Câmara e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no Senado.
O esquema tem sido apelidado de “tratoraço”, em alusão aos tratores; e de “bolsolão”, em já que era um orçamento para “comprar apoio” de aliados, similar ao mensalão. O Ministério Público Federal (MPF) e o Tribunal de Contas da União (TCU) fizeram pedido de investigação sobre o caso, para averiguar possível uso político do orçamento público. Analistas consideram “crime de responsabilidade” o orçamento paralelo com uso político e, caso se confirme, é mais motivo legal para o impeachment de Bolsonaro.
Edição: Monyse Ravena