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Coluna

O corpo de Deus é corpo humano

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Tampouco o corpo do homem e da mulher, seja criança, jovem, adulto e idoso, podem ser objeto de exploração, violência, abuso e tortura - VisitRecife
Celebrar Corpus Christi é também um momento de, com Jesus, reconhecer e assumir nossa fragilidade

A Festa do “Corpo de Deus”, ou Corpus Christi, nos leva a muitas reflexões e sentimentos. O corpo de Deus é corpo de homem. É corpo humano. Sim, Deus é um homem. Foi ele, falando ao seu Pai, quem disse a seu respeito. “Tu, porém, formaste-me um corpo. Por isso eu digo: Eis-me aqui” (Hb 10,5-7).

Celebrar o corpo de Deus é celebrar o corpo humano. Para mim esta mensagem é o que há de mais inédito no anúncio daqueles que viveram com Jesus. É certo: ele é Deus, mas um Deus de carne e osso. Olhamos para Deus com o mesmo espanto de Adão na narrativa alegórica do livro do Gênesis, quando viu Eva pela primeira vez. “Agora sim, é carne da minha carne e ossos de meus ossos” (Gn 2,23). Entendo e sinto melhor o evangelista João. “No princípio era o Verbo e o Verbo era Deus... e o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 1.14). Jesus é carne de nossa carne.

Corpo de Cristo na Eucaristia

Este Deus-corpo depois vai dizer: “tomai e comei, isto é o meu corpo”.  Ele é o pão descido do céu e se torna comida. O Verbo feito carne diz: “quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida” (Jo 6,54); e ainda: “o pão que eu darei é minha carne para vida do mundo” (Jo 6, 51).

Neste ponto, chegamos à Festa de Corpus Christi de hoje. Aquele que se fez carne no Natal e que morreu e ressuscitou na Páscoa deixa o seu memorial como refeição e ceia dele mesmo. “Tomai e comei, isto é o meu corpo... Tomai e bebei, isto é o meu sangue... Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). Sacrifício Pascal de Cristo. O que foi ontem no tempo, na liturgia é hoje, é agora.

Corpo de Cristo na Igreja, na humanidade e na Criação

Se no primeiro instante ele se unia a nós ao fazer-se carne e tomado um corpo, agora é nós que nos unimos a ele ao comer sua carne e beber o seu sangue. “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo 6,56). Chamamos isso de comunhão. Celebrar Corpus Christi é fazer comunhão com Deus, por Cristo, no Espírito Santo que se estende a uma comunhão com a Igreja, a humanidade e a natureza.

Festejar solenemente a Festa do Corpo de Deus nos recorda – isto é, coloca de novo no coração – e nos faz renovar a consciência de que o Corpo de Cristo é a Igreja. Assim, quando comungamos o Corpo de Cristo, comungamos Cristo Cabeça e comungamos Cristo Corpo, que é a Igreja.

Em toda oração eucarística pedimos ao Pai, que por meio de Seu Filho, derrame o Espírito Santo em dois momentos. No primeiro, para transformar o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo e, no segundo, sobre a Igreja, para que comungando o corpo e o sangue de Cristo, se torne corpo de Cristo. “Concedei que, alimentando-nos com o corpo e o sangue do Vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito” (Oração Eucarística III).

Na verdade, comungamos o Corpo de Cristo para nos tornamos cada vez mais Igreja, que é o Corpo de Cristo (cf. Cl 1,18). Comungamos o Corpo de Cristo para nós tornamos Corpo de Cristo. Deste modo a comunhão só é autêntica quando vivemos em comunhão uns com os outros (cf 1 Cor 12,12).

Corpo de Cristo confidencia: “a carne é fraca”

Ainda tem outro ensinamento muito bonito a partir desta festa. O Verbo feito carne também faz uma revelação: “a carne é fraca”. Ele que assumiu o corpo, Ele que se fez carne, reconhece e assume a fragilidade e contingência da condição humana. Estas palavras não são ensinamentos.

\Naquela noite de angústia e de agonia no Monte das Oliveiras, quando Jesus disse a Pedro, Tiago e João – “orai e vigiai porque o espírito é forte, mas a carne é fraca” (Mt 26, 41) –, Ele não falava com um professor aos seus alunos, um mestre aos seus discípulos, um deus aos homens. Ele falava de igual para igual. Ele falava de um homem para outros homens. Na verdade, era uma confissão, uma confidência. O Verbo feito carne confidencia angustiadamente que a carne é fraca.

Celebrar Corpus Christi é também um momento oportuno de com Jesus reconhecer e assumir nossa fragilidade. “Porque, apesar de haver sido crucificado em fraqueza, Ele vive, e isso pelo poder de Deus. Semelhantemente, somos fracos Nele, mas, pelo poder de Deus viveremos com Ele” (2 Cor 13,4).

Corpo de Cristo no pobre

Encontramos ainda, à luz desta festa do Corpo de Deus, a importância da dignidade do Corpo do homem e da mulher em meio aos grandes apelos que enfrentamos de todos os lados, dos falsos deuses do hedonismo e consumismo e das tantas violações dos Direitos Humanos que, ferindo o corpo, fere o todo da dignidade da pessoa humana.

Tampouco o corpo do homem e da mulher, seja criança, jovem, adulto e idoso, podem ser objeto de exploração, violência, abuso e tortura física e psíquica. Existe um vínculo intrínseco do corpo de Cristo, do corpo da Igreja, do corpo de cada mulher e de do cada homem, do corpo da “criação que geme como em dores de parto esperando também ela a glória e a liberdade dos filhos de Deus” (Cf. Rm 8,20-22).

Celebrar Corpus Christi nos favorece viver uma vida mais simples, à luz das bem-aventuranças da pobreza evangélica e nos impulsiona a reconhecer a dignidade humana – inerente a cada pessoa criada por Deus – através da garantia dos Direitos Humanos, civis e político, assim como os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

Para encerrar, nunca podemos esquecer que a presença augusta de Cristo no Santíssimo Sacramento também é presença e se faz corpo no corpo de que tem fome e sede, está doente, nu ou na prisão (Cf Mt 25, 31-46). Na Ceia diz dele: “isto é meu corpo”; no Juízo Final ele diz: “eu tive fome... foi a mim que fizeste”. O Corpo de Cristo no altar e o Corpo de Cristo no corpo e no sangue do pobre.

Não temos para onde correr! A Mesa que institui a Eucaristia é a mesma que institui o Mandamento Novo. O primeiro tomando o pão e vinho. A segunda tomando jarra, bacia e toalhas nas mãos. Os verbos nas duas ocasiões estão no imperativo. “Fazei isto em memória de mim” e “façais vós também” (cf. Jo 13, 15b; Lc 22,19b).

Corpo de Cristo e pandemia

Outra coisa, cara leitora e leitor: no dia em que os católicos levam o Santíssimo Sacramento em procissões tão bonitas – e agora reinventadas por causa das restrições da pandemia que atravessamos – não podemos esquecer dos milhões de doentes e das mortes no mundo inteiro, especialmente no Brasil (já quase meio milhão!). Muitas delas poderiam ter sido evitadas se aqui se governasse com amor, compaixão, respeito à vida, consciência, sensibilidade, maior compromisso, responsabilidade, logística e agilidade.

Todas essas pessoas enfermas ou que fizeram sua Páscoa, eram Cristo. “Estive doente e não me visitastes”.  Tempo de cuidado, tem nos lembrado o Papa sobre a pandemia. Lavar as mãos com sabão, higienizá-la com álcool 70%, usar máscaras. Não relaxar na prática desses protocolos que salvam vidas. E, principalmente vacina no braço e comida na panela!

Corpo de Cristo e os corpos maltratados nas manifestações pacíficas

Antes de terminar este artigo tenho que compartilhar minha solidariedade aos que sofreram no seu corpo e, muito mais ainda, na psique, a violência truculenta de uma parte da Polícia Militar durante os manifestos populares em defesa da vacina para todos e o auxílio emergencial na cidade do Recife. Dois deles perderam um olho.

A vereadora Liana Cirne, tentando ser ponte no meio da Ponte Santa Isabel, procurou mediar o conflito e, como uma profeta colocou seu corpo e sua carteira como proteção aos manifestantes que faziam um protesto pacífico e respeitando os protocolos exigidos para se proteger do vírus. Acabou sofrendo também, sendo atacada com spray de pimenta, seguida por uma queda. Uma ofensa ao estado democrático de direito.

Também foi pronta a resposta do governador do estado, que no mesmo dia se pronunciou oficialmente e tem tomado as medidas cabíveis afastando os envolvidos, abrindo inquérito na Corregedoria Militar e recebendo o pedido de exoneração do comandante da PM-PE. Esperamos que além das iniciativas do Poder Executivo, outros órgãos, como o Ministério Público, sejam provocados para os devidos encaminhamentos para que se faça justiça.

É preciso lembrar que a grande maioria dos policiais não pensam e nem agem assim. Cabe lembrar dos Direitos Humanos dos policiais, de uma formação consistente de cidadania, de uma ação inteligente e articulada, de armas e equipamentos de alta tecnologia para garantir com eficiência a segurança pública, bem como uma assistência psicossocial a esses trabalhadores que atuam em grande grau de estresse. A e o policial têm um corpo!

Voltando à vereadora Liana, naquele seu gesto eu me lembrei imediatamente da carta ao Hebreus, que escreve: “lembrai-vos dos prisioneiros como se vós fôsseis prisioneiros com eles; e dos maltratados, pois também vós tendes um corpo!” (Hb 13,3).

Corpo de Cristo e o Congresso Eucarístico

Festa de Corpus Corpus Christi. Jesus nos ajude no compromisso cristão com a promoção da justiça, da fraternidade, da paz e da ecologia. Aquele que disse “tomai e comei... tomai e bebei... fazei isto em memória...”, Ele coloca no coração e na consciência dos que comem a verdadeira comida e bebem a verdadeira bebida (cf Jo6,55) uma fome e sede de justiça que têm nome de bem-aventurança (cf Mt 5,6). O Congresso Eucarístico Nacional a ser realizado o próximo ano, no Recife, tem como lema “Pão em todas as mesas!”.

Corpo de Cristo e Dom Helder Câmara

Concluo com um testemunho do escritor e monge beneditino Marcelo Barros, no livro “Dom Helder, profeta do macroecumenismo”. No primeiro ano de seu serviço pastoral, na Festa de Corpus Christi, o arcebispo chega pontualmente à catedral para iniciar a missa e depois a procissão na qual deve carregar pelas ruas o ostensório dourado com o Santíssimo Sacramento. Começa a missa. Na oração da coleta, não consegue ler o que está no missal. Com os olhos marejados de lágrimas e a voz tomada pela emoção, ora:

“Senhor, é mais fácil reconhecer a tua presença na hóstia consagrada do que nos milhares de irmãos e irmãs miseráveis que sofrem e penam pelas ruas e cortiços do mundo. Como poderemos passar pelas ruas, com o pão, sinal da tua presença para um mundo novo e de partilha, indiferentes aos adultos e crianças que jazem abandonados no chão?

Edição: Vinícius Sobreira