Para estar na política, as mulheres precisam superar grandes barreiras socioculturais
Nos últimos anos temos assistido a uma escalada da violência contra as mulheres. O discurso de ódio e as ofensas se espalham pelas redes e alcançam a vida real
“Não serei interrompida”. A frase dita por Marielle Franco em seu último discurso antes de ser brutalmente assassinada com Anderson Gomes, no Rio de Janeiro, ainda ecoa mundo afora. Já são mais de 1.100 dias sem resposta sobre quem mandou matar Marielle. E o caso demonstra a gravidade da violência política vivida por mulheres no Brasil: uma mulher negra eleita, barbaramente assassinada no exercício do mandato.
E os episódios de violência não se esgotam: Liana Cirne, vereadora do Recife, foi agredida com spray de pimenta no rosto pela PM durante manifestação contra o governo Bolsonaro no último dia 29 de maio. Liana tentava dialogar e evitar conflitos entre a polícia e participantes de um ato pacífico.
Para estar na política, as mulheres precisam superar grandes barreiras socioculturais e ao chegar ao cenário ainda enfrentam duras campanhas machistas, ameaças, ofensas de cunho sexual. Marília Arraes, Manuela D'ávila e a ex-presidenta Dilma vivenciaram e vivenciam na pele o ódio às mulheres. Manuela vivenciou nas últimas semanas um episódio que causa repulsa e tristeza para quem defende a construção de uma sociedade mais igualitária: o pai de um colega de sua filha, na escola, tirou fotos da menina e divulgou na internet. A partir daí, a família de Manuela passou a receber inúmeras ameaças, que incluíam desde o estupro da menina, que tem apenas cinco anos, até a morte de Manuela.
A história do machismo enfrentado pela ex-presidenta Dilma tornou-se objeto de pesquisa, resultando no livro “Empoderamento e desempoderamento das mulheres no Brasil: ascensão e queda da presidente Dilma Rousseff”. Na obra, publicada nos EUA, Pedro A. G. dos Santos e Farida Jalalzai analisam como o processo que culminou no impeachment da ex-presidenta estava carregado de misoginia e como a ascensão de uma mulher à chefia do Executivo repercutiu negativamente nos anos seguintes no mundo político, com uma onda misógina e machista contra mulheres que tentavam adentrar um espaço até então – e ainda hoje – predominantemente masculino.
Dentro do próprio Congresso Nacional aconteceu recentemente uma série de ataques machistas, com nossas colegas parlamentares sendo chamadas de histéricas e loucas. As ofensas parecem querer intimidar e calar as vozes femininas por possuírem posições próprias.
À frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias tenho me deparado com uma série de denúncias de violências sofridas por mulheres na política. E o cenário é gravíssimo: atentado a tiros contra as residências das covereadoras Carolina Iara (PSOL/SP) e Samara Sosthenes (PSOL/SP); planejamento de atentado contra a deputada federal Talíria Petrone (PSOL/RJ); ameaças de morte contra a deputada estadual Renata Souza (PSOL/RJ); ameaças de morte e ataques racistas contra as vereadoras Ana Lúcia Martins (PT/SC) e Ana Carolina Dartora (PT/PR).
A vereadora Erika Hilton teve mais de 50 mil votos e foi a mulher mais bem votada de São Paulo. A primeira mulher trans a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal recebe constantes ameaças transfóbicas e seu gabinete chegou a ser invadido. Erika precisa de seguranças para continuar a exercer o mandato que a população lhe conferiu.
As mulheres são aproximadamente 52% da população brasileira, 52,5% do eleitorado e quase metade das filiadas a partidos políticos, mas foi somente nas eleições de 2020, depois de mais de duas décadas das políticas de cotas, que o Brasil conseguiu alcançar 30% de candidaturas femininas – e isso ainda não se refletiu de maneira efetiva na quantidade de mulheres eleitas. Foram eleitas 651 prefeitas (12,1%) e 9.196 vereadoras eleitas (16%).
As candidatas seguem tendo acesso a menos recursos e a menor espaço nas propagandas. Pesquisa do IPEA de 2019 mostra que os partidos seguem investindo muito mais recursos em candidatos que já tenham vencido eleições anteriores.
Segundo estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e da ONU Mulheres, o Brasil estava em 2019 entre os países com os piores indicadores da América Latina no que diz respeito à igualdade de gênero na política. O país ocupava o 9º lugar entre os 11 países latino-americanos.
Em 2020, o Brasil ocupava o 143º lugar no ranking de Mulheres nos Parlamentos da Inter-Parliamentary Union, entre 196 países, colocando o país em último lugar na América do Sul e penúltimo nas Américas.
Para enfrentar a desigualdade da representação de mulheres no Brasil, o PT defende na Comissão de Reforma Política a proposta de paridade para as candidaturas, com 50% femininas e 50% masculinas. A emenda prevê também que já na primeira eleição federal, estadual e municipal seja garantido um terço das vagas conquistadas pelos partidos para mulheres. Esse número vai aumentando progressivamente nas próximas eleições até que seja alcançada a paridade também entre os eleitos.
A política é em sua essência o espaço para o debate, para a disputa de ideias. O aperfeiçoamento da democracia passa pela presença dos mais diferentes grupos nos espaços de decisão. Desconsiderar vozes femininas é um enorme erro, algo que atrasa a sociedade como um todo. É inviabilizar o debate franco e invisibilizar pautas importantes e urgentes em um mundo que urge por novos olhares e saídas. Pior: tentar silenciar essas vozes, por meio de ofensas e violências de todo tipo, é atentar contra a própria democracia.
*Carlos Veras é deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores em Pernambuco (PT/PE) e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
Edição: Vinícius Sobreira