Quando se define a soberania alimentar como um princípio, define-se também uma estratégia de luta
No ano em que a Via Campesina celebra os 25 anos da definição, construção e de luta pela “Soberania Alimentar”, a Organização das Nações Unidas (ONU) convoca uma Cubre (reunião de cúpula) com chefes de Estado, membro das grandes empresas e corporações privadas, transnacionais e representante do agronegócio para discutir o processo sistemas alimentares.
A Cúpula dos Sistemas Alimentares (Food Systems Summit, ou FSS, na sigla em inglês) será realizada em setembro de 2021, durante a semana de Alto Nível da Assembleia Geral das Nações Unidas. Em preparação a Cumbre, será realizada em Roma uma pré-Cúpula no final de julho de 2021.
Vou aproveitar este espaço para debater os dois assuntos que se complementam, em dois artigos diferentes. Neste primeiro, vamos discutir sobre o 25º aniversário do debate sobre soberania alimentar. O segundo tema são as contradições da realização da Cumbre sobre sistemas alimentares, que está sendo convocada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas. Esta é a década em que a ONU e os países membros deveriam estar realizando atividades e ações para alcançar até 2030 os objetivos definidos para atingir as metas para construção do Desenvolvimento Sustentável.
A Reunião de Cúpula sobre os Sistemas Alimentares, está convocada justamente no momento em que o mundo passa por uma pandemia, que já tirou a vida de mais de quatro milhões de pessoas no mundo, vítimas da covid-19. Ao mesmo tempo estamos vendo crescer, como consequência das crises, o número de pessoas que passam fome no mundo, com aumento no desemprego, da miséria e da violência.
Soberania Alimentar
Desde a fundação da Via Campesina em 1993, na efervescência da articulação dos 500 anos de resistência indígena, negra e popular, foi realizada a sua primeira conferência na Bélgica. A Via Campesina nasce como uma articulação mundial dos movimentos camponeses. Nesta conferência se define entre seus objetivos a construção de relações de solidariedade entre os povos e em especial entre as organizações camponesas e, reconhecendo a diversidade do campesinato no mundo; a construção de um modelo de desenvolvimento da agricultura que garanta a soberania alimentar como direito dos povos de definir suas próprias políticas agrícolas; e a preservação do meio ambiente com a proteção da biodiversidade.
Nos objetivos definidos, na recém-nascida Via Campesina, estava clara a estratégia de se opor ao agronegócio, à padronização das culturas, ao produtivismo, à monocultura e ao modelo agroexportador que são características do modelo de desenvolvimento do agronegócio. É importante contextualizar que estas ideias não vêm de cabeças iluminadas de lideranças campesinas e assessorias de ONGs que participaram da conferência como convidados, mas, das condições políticas e econômicas do contexto da época.
A década de 1990 foi o período de maior agressividade do modelo capitalista em implantação no mundo; o Neoliberalismo, que na ânsia de avançar o domínio sobre as nações e sobre os modelos de produção agrícola, impõem, principalmente através do Fundo Monetário Internacional (FMI), mudanças nas legislações dos Estados Nacionais, como forma de permitir maior circulação de mercadoria entre os países, com menores custo e sem restrições ou barreiras alfandegárias.
O neoliberalismo promove abertura total das fronteiras para permitir livre circulação das mercadorias, impõe aos países pobres e em desenvolvimento um processo para diminuir as interferências do Estado na economia, enfraquecendo os estados com medidas como as privatizações, em especial, dos serviços públicos e empresas estatais.
A alimentação passou a se transformar em commodities, com interferência da OMC (Organização Mundial do Comércio), negociadas nas bolsas de valores, sem nenhum controle dos agricultores que produzem alimentos. Em contrapartida as grandes corporações internacionais, em sua grande maioria, norte americanas e europeias passam a controlar a produção, a agroindústria, os estoques/armazenamento, a distribuição e o preço. O agronegócio avança sobre os territórios promovendo a violência e destruição de comunidades camponesas, a serviço da expansão do agronegócio e do avanço das corporações sobre as soberanias nacionais.
A “soberania alimentar” como conceito e bandeira de luta foi uma das definições da segunda conferência da Via Campesina, realizada no México em abril de 1996, nos mesmos dias em que ocorreu no Brasil, no estado do Pará, o massacre em Eldorado dos Carajás no dia 17 de abril.
Neste mesmo encontro, motivados por uma profunda indignação pelo massacre e de forte pesar pelos 19 mortos, definiu o dia 17 de abril como o dia mundial de luta camponesa. A conferência define a soberania alimentar como contraponto as definições institucionais da ONU, da Segurança Alimentar, criada em 1985 com o objetivo de garantir a todas as pessoas, independente da situação: de guerra, de guerra civil, de calamidade, de catástrofes, de conflitos; todas as pessoas têm direito a se alimentar, como um direito internacional e obrigação dos Estados e dos organismos internacionais.
Este conceito se fosse efetivamente aplicado poderia impedir a fome no mundo. No entanto, a fome é um dos maiores problemas do mundo provocado principalmente pela altíssima concentração de riqueza nas mãos de uma minoria, enquanto a grande maioria vive em condições sub-humanas, bem abaixo da linha de pobreza. A Segurança Alimentar não discute o tipo de alimentação, e as condições nas quais os produtos alimentícios são produzidos, muitas vezes às custas de exploração de trabalho infantil; de trabalho análogo à escravidão; da destruição ambiental; do trabalho forçado de mulheres, jovens e de todas as adversidades e violências cometidas contra famílias camponesas que são expulsas das terras e territórios, para abrir fronteira para o agronegócio.
A soberania alimentar, em seus 25 anos de construção, vem debatendo a ideia de que não basta apenas a alimentação chegar às pessoas. Provoca-nos a discutir que tipo de alimento, quais as condições de produção, qual a relação desta alimentação com o processo de produção, com trabalho, com o meio ambiente e com as comunidades locais e originárias. A produção de alimentação tem que promover uma relação saudável de convivência com o meio ambiente; com condições de trabalho digno. A produção de alimentos tem que estar concatenada com a ideia de que o alimento produzido deve ser saudável, sem uso de insumos químicos, de agrotóxicos, com sementes produzidas pelos próprios camponeses.
A soberania alimentar está intrinsecamente vinculada ao debate de qual tipo de campo e o tipo de desenvolvimento se quer para o campo e que tipo de alimentação se quer produzir. E para quê queremos produzir? Para priorizar a produção de alimentos para o mercado local, a partir da cultura de consumo local e regional. A Soberania nos permite pensar a estratégia de romper com a política da OMC e das grandes corporações de controle do mercado de alimentos.
Para a Via Campesina a soberania alimentar é muito mais do que um conceito, é uma estratégia de desenvolvimento e do modo de vida no campo. É um princípio que deve orientar as organizações camponesas em todo mundo. Portanto, quando se define a soberania alimentar como um princípio, define-se também uma estratégia de luta. Nestes 25 anos da soberania alimentar muitas lutas e mobilizações foram realizadas. Em especial podemos lembrar as lutas realizadas na Europa nos anos 90, contra a intervenção da OMC na produção e no comércio da produção agrícola.
Tivemos as mobilizações e lutas contra as sementes geneticamente modificadas, as chamadas sementes transgênicas, a defesa das sementes “patrimônio da humanidade”. Lembro aqui, o ato das mulheres, durante a realização do I Fórum Social Mundial em Porto Alegre, quando um coletivo de mulheres internacionais realizou um de protesto em que destrói uma sementeira de pesquisa de sementes transgênicas da Monsanto. A partir deste ato a Via Campesina passar a defender a “semente é patrimônio do povo a serviço da humanidade, deve ser preservada e produzida pelos camponeses como indispensável a produção de alimentos saudáveis”.
Na defesa da soberania alimentar muitas lutas foram realizadas no mundo inteiro, como vimos no final de 2020 as mobilizações dos camponeses na Índia contra o governo conservador que está desestruturando as políticas públicas para o campo para abrir espaço para o agronegócio e empresas agrícolas estrangeiras. A luta pela construção do modelo de desenvolvimento do Campo do “Bién Vivir” na Bolívia, o método “camponês a camponês” desenvolvido em Cuba para multiplicar a produção agroecológica. Mas queria encerrar lembrando de três lideranças que marcaram estes 25 anos e nos deixaram ensinamentos em defesa da soberania alimentar.
Lembrar do camarada Lee, como era chamado, Lee Kyang Hae, tinha 55 anos, um agricultor coreano que, em 10 de setembro de 2003, durante a 5ª Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio - OMC em Cancun (México), imolou-se carregando um cartaz que dizia “A OMC mata os agricultores”. Ele entregou a vida pela causa e sua morte foi uma mensagem: “Ou se morre lutando ou se morre definhando de fome, ou da perda da identidade camponesa”.
Lembrar o companheiro, Joseph Bové, francês, que ainda vive. Camarada muito importante na história de luta da Via Campesina. Liderou as mobilizações na França, no início do século, em defesa da soberania alimentar e contra a intervenção do agronegócio na produção de alimentos.
E por último, lembrar do camarada Egídio Bruneto, que nos deixou muito precocemente vítima de um acidente. Era dirigente do MST e membro da coordenação internacional da Via Campesina. Na luta em defesa das sementes como Patrimônio da Humanidade, sempre que viajava levava escondido nos bolsos ou na mala algumas sementes que ele entregava aos camponeses de forma pessoal e conspiradora, e quando vinha da viagem praticava o mesmo intercâmbio de sementes, poucas, algumas apenas, mas entregava aos militantes de acordo com o clima e região de origem das sementes. Nos ensinou a intercambiar e globalizar as lutas e as sementes.
Soberania alimentar como um direito dos povos em definir suas políticas agrícolas e alimentares. Produzir alimentos, e alimentos saudáveis para todo povo.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal
Edição: Vanessa Gonzaga