Antes referência mundial no enfrentamento à fome, o Brasil retrocedeu nos últimos anos. O cenário de crise econômica foi acompanhado de retrocessos também nas políticas públicas para lidar com seus impactos sociais, que resultaram em um quarto da população brasileira vivendo em situação de insegurança alimentar grave ou moderada.
Uma das políticas que andou para trás nos últimos anos foi o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), através do qual o poder público compra alimentos produzidos pela agricultura familiar e repassa à população.
Existente desde 2003, o PAA é financiado com recursos federais, através do Ministério da Cidadania. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) compra itens da agricultura familiar e repassa para entidades não governamentais (ONGs) cadastradas em conselhos locais de assistência social, da infância e adolescência e do idoso.
Os itens também são repassados para órgãos públicos da rede de assistência social, como Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), dos governos estaduais e municipais.
No entanto, apesar da piora no quadro econômico e social do país nos últimos anos, os recursos para o PAA sofreram seguidos cortes. Em 2014, o PAA Doação executou R$ 285,7 milhões em 1.063 contratos de compra, mas perdeu recursos em 2015 (-15,6%), 2016 (-24,6%), 2017 (-46,9%), 2018 (-42,6%) e 2019 (-43,7%).
Em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, o programa teve o orçamento mais baixo da história: R$ 31,2 milhões para apenas 323 compras no país.
Em 2020, já em meio à pandemia, o PAA recebeu uma injeção, com um orçamento de R$ 202,7 milhões para 1.612 compras, mas a maior parte ainda não foi efetuada. Para 2021, redução pela metade: está previsto um orçamento de R$ 101,7 milhões, que ainda pode sofrer cortes.
Apesar de já estarmos em agosto, a Conab ainda não está recebendo propostas do PAA 2021.
Menos renda
Com o recuo no PAA, as famílias agricultoras perderam renda. Em Pernambuco, o agricultor familiar José Gomes, de 45 anos, lembra que a compra de alimentos pelo governo através do PAA aumentou durante alguns anos a renda das famílias agricultoras, que deixaram de depender dos “atravessadores” que levavam os alimentos para as feiras.
“O trabalho não é só produzir e criar, tem que ter onde escoar a produção. Mas as feiras e atravessadores sempre querem um percentual alto de lucro. Não se contentam com 15%, sempre querem entre 30% e 40%”, explica Gomes.
O agricultor e sua família vivem no Assentamento Normandia, em Caruaru, no semiárido pernambucano. Eles sempre trabalharam com caprino e ovinocultura, mas ampliaram a produção de itens básicos da alimentação diária para atender as demandas do PAA.
“Passamos a ter onde escoar a produção e a criação. Produzíamos milho, macaxeira, batata doce, feijão e jerimum. Conseguimos evoluir nossa produção. Tudo vendíamos direto para o PAA e recebíamos um valor sem o atravessador. Tivemos boas vendas até o governo Dilma”, lembra.
Para alcançar o que os camponeses chamam de “preço justo”, a Conab faz um estudo e define uma tabela de preços fixos para cada item alimentar. O preço da tabela não é o mais alto, mas é estável. As variações do mercado ao longo do ano não afetam os contratos do PAA. As cooperativas de agricultores analisam se vale a pena vender para a Conab e, se sim, fazem a proposta.
O valor proposto pode chegar ao máximo de R$ 320 mil. Se aprovada, a cooperativa tem até dois anos para fornecer os alimentos, entregues em quantos carregamentos forem necessários, o que dá liberdade ao camponês. Se o preço no mercado estiver acima da tabela da Conab, a cooperativa pode optar pelo mercado. Quando no mercado o preço estiver abaixo da tabela, os agricultores podem fazer a entrega do PAA.
José Gomes conta que passou a sentir o impacto dos cortes no PAA no fim do governo Temer. “Em 2018 começa a fase ruim, muitos cortes, que continuaram no atual governo. As dificuldades voltaram. A gente produz, mas tudo tem que passar pelos atravessadores”, lamenta.
“Com o PAA passamos a produzir mais e a vender a um preço justo. Mas com os cortes muita gente diminuiu a produção porque não tem mais onde vender. Muita gente está passando dificuldade, um ‘desmantelo’ na vida do povo”, conta. “É uma perda muito grande para mim e para os outros trabalhadores da região. Mas pior é não produzir”, conta José Gomes.
Menos investimento
De acordo com os dados na página de transparência pública da Conab, a superintendência regional em Pernambuco recebeu apenas R$ 1,15 milhão para o PAA em 2019. O valor representa um corte de mais de 70% no valor de 2018. Foram efetuadas apenas sete compras, das quais seis ainda não foram concluídas.
Em 2020, o valor disponibilizado saltou para R$11 milhões, destinados a 56 compras (das quais 41 ainda estão em execução). Ainda segundo a Conab, a região Nordeste é a que mais recebe recursos do PAA, ficando com 44% do total.
Diante dos sucessivos cortes, o coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), Alexandre Henrique Pires, destaca a falta de compromisso do poder público com a execução dos poucos recursos destacados para o programa.
“O orçamento do PAA em Pernambuco no ano de 2020, menos de 50% foi executado até o momento – e nós já passamos mais da metade do ano. Então significa que tem um problema de gestão do programa”, diz Pires.
O coordenador da ASA também lamenta que o Governo Federal permita que isso ocorra em um momento crítico da vida das famílias mais pobres do país. “Os dados do inquérito de insegurança alimentar da covid-19 já apontavam que mais da metade da população brasileira estava em insegurança e 19 milhões passando fome”, lembra ele.
“Então como um programa com um potencial como esse, de fortalecer a agricultura camponesa e familiar que produz alimentos saudáveis é fragilizado no momento em que a sociedade passa a ter mais pessoas passando fome?”, questiona.
Atuando com milhões de famílias agricultoras na região Nordeste e no norte de Minas Gerais, a ASA considera que é intencional essa fragilização, visando beneficiar os grandes capitalistas.
“A agricultura familiar camponesa é um ponto de resistência na proteção da biodiversidade nos solos, das fontes de água, das nossas matas e florestas. São eles que estão resistindo contra o avanço do agronegócio, contra a mineração. Então, quando o Governo Federal reduz o investimento e as estruturas de gestão para a agricultura familiar, está fragilizando um ponto de resistência à essa lógica capitalista”, opina Alexandre.
Bancos de alimentos
Na outra ponta do PAA estão a população que está passando fome e as entidades que recebem os itens do programa e que alcançam essas pessoas. No caso de Pernambuco, a maioria das aquisições do PAA passam antes pela Rede de Banco de Alimentos do Sesc no Recife, em Caruaru, Garanhuns, Arcoverde e Petrolina.
Os bancos precisam repassar os itens para organizações na ponta, que distribuem os alimentos à população (como associações comunitárias) ou consomem (como creches, abrigos de idosos). Essas entidades vão ao banco de alimentos buscar os itens com uma regularidade quinzenal.
“No estado temos cadastradas 400 instituições, sendo mais de 200 no Recife. Em junho só no banco do Recife fizemos 247 repasses”, conta Isolda Braga, gestora dos cinco bancos do Sesc em Pernambuco, que participam do PAA desde 2014.
Os bancos de Pernambuco recebem principalmente macaxeira, legumes, folhosos e frutas, mas também polpas de frutas, mel de abelha e carne de bode, tudo produzido pela agricultura familiar em Pernambuco.
“As cooperativas de hortifruticultura costumam fornecer quinzenalmente. Quando a safra é boa, trazem em semanas consecutivas. Mas se a safra estiver ruim, passam um ou dois meses sem entregar. Depende da natureza”, conta Braga. O banco de alimentos faz a pesagem e atesta a qualidade antes de repassar às instituições.
O Banco de Alimentos do Sesc no Recife recebe em média 26 toneladas de itens do PAA por mês e atende aproximadamente 15 organizações por dia, que levam os produtos que tiverem chegado nas últimas 24 horas. Isolda conta como o quadro de empobrecimento da população, acelerado pela pandemia, foi sentido pelo banco de alimentos.
“Um exemplo são as creches, que precisaram fechar. E se antes levávamos alimento para 30 crianças, agora as creches precisam fornecer comida para 30 famílias inteiras, que normalmente são trabalhadores informais, gente que perdeu a fonte de renda e ficou ainda mais dependente dessas instituições”, diz ela.
Além do programa federal, o Governo de Pernambuco criou em 2020 um “PAA Estadual” a partir de uma lei aprovada na Assembleia Legislativa. O “PEAAF”, no entanto, ainda não foi regulamentado e sequer foi mencionado ou recebeu recursos na Lei Orçamentária Anual de 2021.
“A gente precisa de uma regulamentação para saber como o programa vai funcionar, de onde vai sair o recurso e como aplicá-los no funcionamento do programa”, cobra Alexandre Pires, da ASA. “Qualquer lei ou política que não tenha recursos, não passa de ‘intencionalidade’, mas essa intencionalidade não serve para a política da vida real, concreta. Tudo depende de orçamento”, completa.
Pires reforça que os recursos públicos voltados para a agricultura familiar não beneficiam apenas este grupo, mas a vida econômica de grande parte dos municípios do interior. “O recurso que é investido no PAA dinamiza a economia local e gera novos empregos, gera renda e melhora a segurança alimentar de todos”, conclui.
Sem respostas
O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA) do Governo de Pernambuco, solicitando uma entrevista com o secretário Claudiano Martins Filho - que também é deputado estadual pelo PP.
Através de uma nota, a SDA não respondeu aos questionamentos da reportagem e disse apenas que o PAA é de responsabilidade federal e que a secretaria, através do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), apenas “operacionaliza, executa a compra de produtos dos agricultores familiares e faz a doação para as entidades assistidas”.
A reportagem também entrou em contato com a Conab em Pernambuco. O superintendente Antônio Elizaldo de Vasconcelos agendou uma entrevista na sede da superintendência, mas no dia e hora pediu que um funcionário informasse que não seria possível conversar com a reportagem sem antes obter autorização de Brasília.
Edição: Mariana Pitasse e Vanessa Gonzaga