“Senhor Ministro da Educação Milton Ribeiro: eu vim lhe dizer que eu sou uma mulher com deficiência e que sim, eu atrapalho. Minha filha que também tem uma deficiência a quem muito provavelmente o senhor incluiria nos 12% com os quais são impossíveis de conviver, ela também atrapalha. Nós atrapalhamos por decisão, não porque temos uma deficiência”, disse Mariana Rosa, mulher com deficiência, mãe de pessoa com deficiência e militante pelo coletivo feminista Hellen Keller.
“Revoga já” tem sido a solicitação política mais emergente atualmente no campo de luta das pessoas com deficiência. Isto porque, representado pela numeração 10.502/20 – e coloco como número por me recusar a chamar de política – está contido o nefasto texto apresentado pelo atual governo que autoriza o retorno das Escolas Especiais, tão duramente combatidas há pelo menos 30 anos.
O resultado disso é o rompimento de uma luta incessante que se contrapõe ao modelo médico clinicalizante, o qual subjuga a deficiência como patológico e não como condição. Isso significa desconsiderar resistências históricas que percorrem um caminho em desacordo com os diversos estigmas, os quais misturam de maneira equivocada, porém não genuína, direito com caridade, assistencialismo com inclusão, amor domínio com emancipação e romantização no discurso de superação com injustiças sociais.
O que precisa ser esclarecido é que o texto contido nessa numeração não tem a ver apenas com a retirada das pessoas com deficiência do ambiente educacional diverso – o que já é uma grande ferida às conquistas realizadas por esse grupo – mas o reforço da lógica econômica, cultural e histórica ao qual esses sujeitos são designados, ao não pertencimento. Isso porque o mote de ordem quando tratamos da deficiência como condição se concentra em subverter a ordem estrutural, na tentativa de chamar atenção para a desigualdade como um dos fatores que dá forma aos mais diversos enfrentamentos das pessoas com deficiência diariamente.
Então, a bandeira "incluir" seria de maneira sucinta, não negar que a deficiência existe e que ela precisa, sim, de visibilidade e representatividade. Entretanto, também nos direciona à necessidade de construir um enfrentamento econômico da desigualdade trazendo para a centralidade da discussão a deficiência, nos deslocando desse lugar do “nunca pensei sobre isso” para a compreensão de que a deficiência é mais uma característica humana apagada pela estrutura social.
É preciso entender isso nessa complexidade para perceber o tamanho do retrocesso e estrago que o texto do decreto representa. Sendo mais clara ainda, é uma ideia eugênica e antiga de homogeneizar a escola, isto é, retirar do horizonte o que lhe contrasta (as contradições). Assim, se o decreto anuncia que é uma escolha a matrícula na escola regular ou na escola especial, a história retruca com as inúmeras recusas não apenas do ingresso, como também da permanência nos mais diversos espaços, os dedos inferiorizantes apontados, o rótulo da incapacidade, a infantilização e o silenciamento como resultante.
Portanto, nunca foi uma escolha, sempre foi luta! A proposta de uma Educação inclusiva repõe, embora, obviamente, não resolva essas contradições em sua totalidade. Precisamos mudar a escola, questionar os currículos inflexíveis, a falta de acessibilidade, subverter a ordem da exclusão, sair do caminho do imutável para o questionável, porque no final das contas o que atrapalha a educação é a fome. É falaciosa e fascista a ideia de que retirando as pessoas com deficiência da escola resolveremos os problemas que constroem o cenário educacional.
O que incomoda, na verdade, é o fato de existir um corpo com deficiência ocupando, modificando e construindo educação. Isso, por si só, já é contraditório ao próprio fenômeno do capital, uma subversão que realmente deve atrapalhar esse projeto de consumo, sofrimento e morte que é a corponomatividade. Sem dúvida nenhuma, a ordem não é o objetivo, visto que é justamente ela conivente com a ideia infame de discriminação. A inclusão, sobretudo, a vida da pessoa com deficiência não é negociável. Por isso, é necessário ecoar no mesmo som de Mariana Rosa novamente: “te atrapalhar, senhor Ministro, é o nosso gesto político mais urgente”
*Viviane Sarmento é Doutora em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Professora Adjunta da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE), pesquisadora sobre os significados sociais da deficiência, militante pelos Direitos da pessoa com deficiência e pela Marcha Mundial Mulheres (MMM)
Edição: Vanessa Gonzaga