Exatos dois anos depois do derramamento de petróleo que atingiu 11 Estados brasileiros, em 2019, e que segue sem culpados nem punições, comunidades tradicionais da costa do Nordeste agora estão ameaçadas novamente. Um mega projeto de exploração da petroleira ExxonMobil na Bacia de Sergipe-Alagoas, na Foz do Rio São Francisco, começa a sair do papel sem que as populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas e pesqueiras sejam devidamente ouvidas, como manda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A empresa não é famosa somente pelos megaprojetos de energia e pela marca Esso, mas pelos impactos socioambientais que já causou em outros locais e por desastres como a conhecida “Maré negra”, de vazamento de petróleo no Alasca, em 1989, e que, até 2013, era classificado como o maior desastre ambiental da história dos Estados Unidos.
Agora a Exxon Mobil tornou-se uma ameaça concreta para centenas de famílias brasileiras, num momento de pandemia e em que o país vê sua legislação ambiental ser esfacelada. O projeto prevê a atividade de perfuração marítima de poços exploratórios de petróleo e gás natural em seis blocos, é o chamado Projeto SEAL. Poderão ser perfurados até 11 poços.
Segundo o próprio Relatório de Impacto Ambiental, quase 80 municípios, do Rio Grande do Norte até o Rio de Janeiro, estão localizados na grande área de influência do projeto e sujeitos, portanto, aos impactos potenciais da atividade de exploração da ExxonMobil. Até o momento, através de uma carta aberta, mais de 100 organizações do Brasil e do exterior já se posicionaram contra o licenciamento para exploração na região.
População não foi consultada
Maria Izaltina Silva, de 54 anos, é uma das moradoras de Brejão dos Negros, no município de Brejo Grande, em Sergipe. O quilombo é formado por cinco comunidades num território pesqueiro e extrativista onde vivem 486 famílias. É o local mais próximo dos pontos de exploração da ExxonMobil, a 50 quilômetros dali, na divisa com o município alagoano de Piaçabuçu.
Izaltina lembra que a população já vive constantemente a sensação de vulnerabilidade nos territórios e o sofrimento por causa da “sucessão de tragédias”. “Aqui tem um povoado que o mar avançou e ninguém foi compensado por isso. Tivemos que tirar uma comunidade inteira da área da proximidade costeira”, relembra, falando ainda do petróleo de 2019 e da pandemia.
Isso sem contar com o manguezal que está sendo destruído para dar lugar à carcinicultura. Já há fazendas de camarão até mesmo na área de praia, diz a moradora. “Não há compensação para isso, os danos são muito grandes, a gente não quer ser compensado por tragédia, porque não vale a pena”, adianta Izaltina. “Eles não vêm nas comunidades, não vêm fazer as consultas prévias. Quando a gente sabe já vai ser implantado. Chegam aqui com estudos ultrapassados. É uma falta de respeito muito grande. É como se a gente não existisse. A ganância é muito grande para implantar esses empreendimentos”, protesta.
“Você imagina um poço aqui perto, a gente não vai ter sossego. O mangue é de onde tiramos o sustento, é o berçário da vida marinha”, alerta. “As comunidades tradicionais têm seu modo de vida. A gente vive em comunhão com o meio ambiente, a gente precisa dele para sobreviver. Quando precisamos pegar, por exemplo, uma madeira, pegamos de forma que não desmate”, diz Izaltina sobre a importância dos povos tradicionais na preservação ambiental.
As comunidades denunciam que o Ibama tem ignorado o direito a consultas prévias, livres e informadas e já está encaminhando a próxima etapa do projeto, de autorização das perfurações, com realização de audiência pública somente em formato virtual. Os representantes das comunidades acreditam que a consulta online não é adequada, por uma série de razões, incluindo uma básica: a falta de acesso à internet em algumas comunidades.
Diante do temor e da violação de direitos básicos, lideranças comunitárias, através do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe, resolveram ir até a ExxonMobil solicitar informações e uma reunião. Até então, algumas poucas pessoas haviam sido “notificadas” da novidade apenas por ligações telefônicas, em junho, sobre a chegada da empresa que pode impactar o meio ambiente e toda uma cadeia de produção, sobrevivência, saúde e cultura.
O primeiro encontro aconteceu. No entanto, a empresa repassou à população somente o Relatório de Impacto Ambiental e um link do Estudo de Impacto Ambiental, cujos arquivos não abriam, segundo as lideranças. A carta dos povos ainda denuncia que “em reunião, uma das representantes da Exxon nos afirmou que, em relação aos impactos não nos preocupássemos, pois ‘se algo acontecer, vocês vão saber onde bater’”.
Convenção internacional prevê consulta prévia
A Consulta Prévia, que deve ser livre, informada e de boa fé, está prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, e assinada pelo Brasil por um Decreto Federal em 2004. A legislação determina direitos específicos aos povos indígenas e tribais, quilombolas, pescadoras e pescadores, entre outros que se autorreconheçam como povos e comunidades tradicionais.
“A consulta deve ser prévia, pois devemos opinar sobre o empreendimento antes de ele ser instalado; livre, pois não deve haver pressões por parte do governo ou empresas para que nos posicionemos; e informada, pois o governo deve disponibilizar todas as informações de forma acessível sobre o projeto e a obra, para que as comunidades possam entender o tamanho do impacto que será causado”, explica um trecho da carta dos povos.
Além da consulta, as famílias também querem a complementação do Estudo de Impacto Ambiental, com coleta de informações nos territórios, inserção do componente etnoambiental e intervenção de órgãos como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
As comunidades dizem ainda que, se caso o Ibama considere que não há segurança para realizar a audiência presencial neste momento, então que aguarde até um momento mais oportuno. Mas, não havendo condições de realizar o diálogo presencialmente, que o projeto seja, por ora, adiado.
O Ministério Público Federal (MPF) publicou, no final da semana passada, uma recomendação para que seja suspensa a audiência virtual agendada para o dia 14 de setembro e para que sejam realizadas as consultas às comunidades, nos moldes do que assegura a Convenção 169 da OIT.
A Marco Zero procurou o Ibama e a ExxonMobil, no início da tarde, para comentar o assunto, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. A ExxonMobil solicitou adiamento do prazo, mas foi informada de que o texto será atualizado assim que seu posicionamento for enviado.
Em um site sobre o processo de audiências públicas produzido pela própria empresa, consta que “a perfuração do primeiro poço deverá já ser iniciada no segundo semestre de 2021. A partir dos resultados do primeiro poço, serão definidas as atividades nos demais”.
Mais adiante, já há menções ao destino de resíduos: “Para dar apoio à atividade de perfuração, será utilizada uma base em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, e outra em Maceió, no estado de Alagoas. Já para o suporte marítimo, serão utilizadas cinco embarcações. A função destas embarcações será levar equipamentos e suprimentos para a unidade de perfuração e trazer os resíduos gerados na unidade, para destinação em terra – reciclagem, disposição em aterro.”
A posição do Ibama
Às 18h de terça-feira, pouco depois da publicação desta matéria, recebemos a posição oficial do Ibama por meio de nota, que publicamos na íntegra a seguir:
“O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) informa que foram realizadas 15 reuniões preparatórias para a audiência pública que está programada para o dia 14 de setembro. O objetivo foi informar sobre o projeto de exploração da Exxon Mobil e possibilitar uma participação mais efetiva dos interessados. A audiência acontecerá de forma mista, sendo realizada virtualmente e com pontos de transmissão em locais indicados que vão possibilitar a participação da população local.
A OIT 169 aplica-se apenas a povos indígenas e tribais. Quando identificados impactos sobre comunidades tradicionais, o estudo ambiental apresenta ações específicas de mitigação e compensação ambiental.”