A fundamentação da opção preferencial pelos pobres é cristológica
Num dia bem cedo, naquele momento onde não se é mais noite nem tão pouco ainda é dia, no tempo do antigo testamento, um grupo de jovens semitas subiram o monte para salmodiar. Um levava a harpa, outro a cítara, um ainda carregava a flauta e mais um, o pandeiro. Eles cantavam o Salmo 85,10: “ A verdade e o amor se encontram; a justiça e a paz se beijam e abraçam”.
Centenas de anos depois um jovem, Deus jovem, Aquele que nos amou antes que amássemos a Ele (1 Jo 4,19), Aquele que tendo nos amado nos amou até o fim (Jo 13,1), falava “para multidão que ficava admirada com as palavras cheia de graça e de encanto que saíam de sua boca” (Lc 4,22) e sua “boca falava do que estava cheio o coração” (Cf Lc 6,45, por isso, “experimentaram a beleza da palavra de Deus” (Hb 6,5) e Ele mesmo era a “Palavra que se fez carne e habitou entre nós”(Jo 1,14) e então disse no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados” (Mt 5, 6).
Aqui está, para mim, a fundamentação mística, ética, estética, teológica e pastoral do engajamento apaixonado dos cristãos com a promoção da dignidade humana, da justiça social, da democracia, dos Direitos Humanos civis e políticos, assim como dos Direitos Humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais e do cuidado com a Casa Comum (que é sujeita de direitos!)
Nós temos fome e sede de justiça porque comemos do Pão da Vida (Jo 6,51) e bebemos da Água da Vida que Ele nos dá (Jo 4, 14). Nós temos fome e sede de justiça porque comemos a verdadeira comida e bebemos a verdadeira bebida, sua carne, Ele feito carne, e bebemos o seu sangue (Jo 6,55). Nós temos fome e sede de justiça porque comendo da sua carne e bebendo do seu sangue, Ele permanece em nós e nós nele (Jo 6,56).
Nós temos fome e sede de justiça porque Ele nos disse tomando o pão, tomai e comei, isto é meu corpo. Tomai e bebei, isto é o meu sangue (Mc 14,22-25). É porque tomamos e comemos desse pão, é porque tomamos e bebemos desse cálice que, ao tomarmos, ao mesmo tempo que somos saciados, ficamos, por causa dessa comida e bebida, famintos e sedentos dessa bem-aventurança. Quem luta pela justiça, é solidário, generoso e promove a partilha que Jesus nos ensinou na Multiplicação dos Pães, onde os gestos são o da Última Ceia: “Jesus tomou os pães e, deu graças, partiu-os e deu aos seus discípulos...”(Jo 6,11).
Nós temos fome e sede de justiça porque em Mateus, capítulo cinco, versículo seis, ele nos chama de Bem-aventurados e, no capítulo vinte cinco, versículos trinta e quatro e trinta e cinco, Ele nos chama de Benditos. Foi por causa dessa sede e dessa fome que pudemos dar de comer a quem tinha fome e de beber a quem tinha sede tanto na dimensão mais emergencial e urgente, bem como, e principalmente na dimensão de mudanças estruturais.
A fundamentação da opção preferencial pelos pobres é cristológica. Para Eucaristia Jesus diz, “Isto é o meu corpo e sangue”. Para o pobre ele diz “ tive fome... foi a mim que o fizestes” (Mt 25,35.40). Aliás, o que é profecia no Antigo Testamento se torna cumprimento e realização no Novo. “Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne? “(Is 58,6-7)
O Catecismo da Igreja Católica (1397) nos recorda muito bem: A Eucaristia compromete-nos com os pobres: Para receber, na verdade, o corpo e o sangue de Cristo entregue por nós, temos de reconhecer Cristo nos mais pobres, seus irmãos (Mt 25,40) Pode resultar, que mesmo tendo celebrado muitas Missas, que corramos o risco de ouvir lá no final: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo preparado o diabo e para os seus anjos. Pois tive fome e não me deste de comer, tive sede e não me deste de beber” (Mt 25, 41-42).
O que dirão, meu Deus, os que substituíram a paz e o amor do seu Anúncio pelas agressões e o ódio, que trocaram a justiça pela exploração dos pobres e a devastação da natureza? Seria deus e não Deus? Seria jesus e não Jesus? Que deixam o Estado Democrático de Direito, burguês, por propostas totalitárias e ditatoriais? Onde se fundamentam na Doutrina da Igreja? São meu irmãos e irmãs, e amo-os com a ternura de Cristo Jesus (Fl 1,8) .
Imagina Deus dizer para os que vão às missas : “Desprezo as vossas festas, e os incensos de vossas assembleias solenes não me exalam bom cheiro. E ainda que me ofereçais holocaustos, ofertas de alimentos, não me agradarei delas; nem atentarei para as ofertas de vossos animais gordos. Afasta de mim o barulho dos vossos cânticos; porque não ouvirei as melodias de vossas liras. Eu quero, isto sim, é ver brotar o direito como água e a justiça como torrente que não seca. (Am 5,21-24)
Tomemos os nossos instrumentos sonoros, aqueles que temos nas mãos ou no coração. Salmodiemos este encontro da verdade e do amor, que é o Cristo.
Vamos juntos com Dom Helder Camara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo, Dom José Maria Pires, Dom Fragoso, Padre Antônio Henrique,Irmã Dorothy Stang, Padre Josimo, Margarida Maria Alves, Santo Dias, Dermi Azevedo e inumerável multidão de mulheres e de homens.
Vamos, “a marcha final vai ser linda de viver...” como ouvimos emocionados e todos arrepiados na voz poética e profética do Dom em Invocação à Mariama e, Milton Nascimento, ao fundo, numa canção negra antiga e inefável.
Vamos! Vamos em frente motivados pela palavra de um bispo de Roma latino americano de Buenos Aires, Argentina, quando da sua Mensagem de Natal de 2020 a Cúria se referindo a Dom Helder, “aquele santo bispo brasileiro”, disse “Lembremo-nos que só conhece verdadeiramente a Deus quem acolhe o pobre que vem de baixo com a sua miséria e que, precisamente nestas vestes, é enviado do Alto; não podemos ver o rosto de Deus, mas podemos experimentá-lo ao olhar para nós quando honramos o rosto do próximo, do outro que nos ocupa com as suas necessidades. O rosto dos pobres. Os pobres são o centro do Evangelho. E recordo o que dizia aquele santo bispo brasileiro ‘Quando me ocupo dos pobres, dizem de mim que sou um santo; mas, quando me pergunto e lhes pergunto: “Porquê tanta pobreza?”, chamam-me comunista’”.
Vamos! A opção pelos pobres e sua libertação é ordem de Deus. No final da história aqueles que têm fome e sede de justiça ouvirão:
“Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e me destes de comer...: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber?... E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes.” (Mt 25,34-40).
Vamos. Cantemos e dancemos esse abraço da justiça e da paz, música e dança envolvente desses bem-aventurados, melhor, esse beijo, como no original hebraico, a língua daqueles rapazes que foram acordar a aurora.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal
Edição: Vanessa Gonzaga