Recife, a capital das mulheres, que no último censo representavam 53,7% da população e foi a primeira capital do país a estabelecer a paridade entre homens e mulheres no alto escalão – fato importante do qual se orgulha a gestão municipal – uma grave contradição se apresenta no horizonte da redução das desigualdades de gênero: mais trabalho e menos direitos previdenciários para as servidoras, maioria esmagadora no funcionalismo público.
Criado no final da década de 1990, o Regime Próprio de Previdência do Município do Recife surge com o objetivo de assegurar aos servidores públicos efetivos os benefícios da aposentadoria e pensão por morte, e decorre da desvinculação da previdência municipal do IPSEP (Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Pernambuco).
Entre 2001 e 2005 o sistema previdenciário recifense passou por várias reestruturações, dentre as quais destacam-se as ocorridas em 2005, com a criação dos fundos RECIPREV e RECIFIN. Além da criação dos dois fundos, houve a majoração das alíquotas de contribuições previdenciárias da Prefeitura (15,94%), dos servidores, aposentados e pensionistas com proventos superiores ao teto do Regime Geral de Previdência (12,82%).
Agora, em 2021, o Regime Próprio de Previdência do Município do Recife passou por uma mudança muito mais profunda em sua estrutura, aprovada em tempo recorde na Câmara Municipal, sob protestos de parlamentares e servidores públicos, que demandavam mais tempo para dialogar a respeito da “Reforma da Previdência Municipal”. O prefeito encaminhou à Câmara um pacote de Leis de sua iniciativa, que compreendia uma Projeto de Emenda à Lei Orgânica Municipal, um Projeto de Lei Complementar e três Projetos de Lei Ordinária, a fim de “se adequar às novas regras impostas pela Reforma da Previdência Nacional (Emenda Constitucional nº 103/2019), e de aumentar a capacidade de investimento do Município em saúde, educação e obras de infraestrutura nos bairros.”
Dentre as mudanças na previdência municipal efetuadas pela aprovação deste pacote de normas, estão: a) o aumento da alíquota da contribuição das servidoras e servidores municipais para 14%; b) o aumento da idade para aposentadoria compulsória de 70 para 75 anos; c) auxílios temporários deixam de ter natureza previdenciária e passam a ser pagos diretamente pelo Município; d) mudança dos critérios para aposentadoria voluntária, com destaque para o aumento da idade mínima; e, e) mudança no cálculo do valor dos proventos de aposentadorias e pensões.
O ponto mais relevante do ponto de vista das relações de gênero e trabalho, presente nas críticas tecidas pelas parlamentares mulheres, é o aumento da idade mínima para aposentadoria voluntária das servidoras municipais. Antes da aprovação da Lei 18.809/2021 as servidoras e servidores do Recife poderiam se aposentar da seguinte forma: a) com 55 anos de idade mais 30 de tempo de contribuição, cumulados com 10 anos de efetivo exercício e 5 anos no cargo onde se deu a aposentadoria, se mulher; e b) com 60 anos de idade e 35 de contribuição, mais 10 anos de efetivo exercício e 5 anos no cargo onde se deu a aposentadoria, se homem. Professoras e professores tinham redução de 5 anos na idade mínima nessa hipótese. Também havia a previsão de aposentadoria por idade, sendo necessário ter 65 anos, se homem, e 60, se mulher, mais 10 anos de serviço público e 5 no cargo.
A partir de agora, há três formas de aposentadoria no regime de previdência do Recife: a) aposentadoria por incapacidade permanente para o trabalho, sujeita a avaliações periódicas para verificação da continuidade; b) aposentadoria compulsória, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos 75 (setenta e cinco) anos de idade; e, c) aposentadoria voluntária, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição. É sobre esta última forma que precisamos conversar, colocando as lentes de gênero para entender o problema. Vamos às novas regras:
Além disso, ao optar por alíquota única o município onera o orçamento familiar das servidoras e servidores, pois não considera a capacidade contributiva individual de cada segurada(o), o que ao final representa uma perda salarial sem justificativa atuarial. Para adequar a alíquota de contribuições ao parâmetro nacional pós Emenda 103/2019, o Município poderia ter adotado alíquota progressiva, considerando as faixas de renda das servidoras e servidores municipais, que ganham em média R$ 5.524,58 mensais, como foi feito no regime de previdência federal.
Embora o Conselho de Previdência do Município aponte a reforma como mais benéfica que a nacional, por trazer uma idade mínima inferior em um ano, a reforma municipal fixa o tempo mínimo de contribuição em 25 anos para servidoras e servidores, que no plano nacional, são prazos diferentes: 15 anos para mulheres e 20 para homens. Para professores, no RGPS, se exige 15 anos de tempo de contribuição, enquanto no Recife são exigidos pelo menos 25 anos de magistério. Quando comparamos com as regras de aposentadoria anteriores, a situação fica ainda mais crítica: para mulheres, houve um aumento de seis anos na idade mínima para aposentadoria e para os homens, a ampliação foi de três anos.
Atualmente o Recife tem 29.288 servidores públicos na ativa, dos quais 9.666 são homens e 19.622 são mulheres, dentre as quais pelo menos 8.660 estão trabalhando em atividades de cuidado remuneradas, tais como professoras, agentes de saúde, enfermeiras e técnicas de enfermagem. As mulheres que cuidam de formar cidadãos e cidadãs recifenses nas escolas do município e as que cuidam de nossos doentes são a parte mais prejudicada no universo de servidoras públicas do município, pois além de trabalharem de forma remunerada em atividades de manutenção da vida e educação, estão submetidas à dupla jornada de cuidado atribuída a mulheres e meninas por todo o planeta, por força da divisão sexual do trabalho.
Aumentar o tempo de aposentadoria em um município onde a quantidade de mulheres servidoras representa quase o dobro da quantidade de homens, sem levar em consideração os anos da vida dedicados ao cuidado não-remunerado, é uma prática que contraria o discurso do início da atual gestão, que foi a primeira no país a estabelecer a paridade de gênero em suas secretarias. A situação fica ainda mais complicada quando se observa a justificativa para o envio da proposta de reforma, que coloca como importante para a continuidade dos investimentos públicos em direitos sociais a necessidade de criar obstáculos para o acesso ao direito social à previdência.
Assombrados há mais de 20 anos com os discursos catastróficos sobre sistema da previdência, as trabalhadoras e trabalhadores são convidados a encarar, sem o debate público consistente em dados oficiais inidôneos, a reforma de 2019, novo grande passo para trás iniciado nas reformas de 2003 e 2013, sem esquecer das demais reformas tributárias que atingiram o sistema de seguridade, como é o caso da lei de responsabilidade fiscal.
O artigo pretende mostrar que a ideologia dominante de que as previdências necessitam de reforma, é falsa. Apesar das resistências dos trabalhadores, esta ideologia tem ganhado adeptos há mais de 30 anos. Uma das razões majoritárias de seu sucesso ideológico repousa no fato de que o debate sobre as aposentadorias permaneceu fechado numa lógica estritamente contábil, que se resume à pesquisa de um equilíbrio entre receitas e despesas. Mas a questão das aposentadorias coloca em jogo outras dimensões, aquelas relativas às condições de emprego e de trabalho. Não é possível abordar a questão das aposentadorias sem pensar em seu reverso. Sobretudo numa sociedade gangrenada pelo desemprego e precariedade. A questão das aposentadorias nos convida também a projetar o futuro, posto que o mundo de amanhã não será composto de aposentados: o lugar que se fará para uns, dependerá daqueles outros. Os aposentados não estão todos em pé de igualdade. Há ricos e pobres, as mulheres e os homens, os assalariados precocemente usados para o trabalho e outros que são menos explorados. Enfim, o futuro de todos deve ser pensado também numa cadeia mais global, tendo em conta a exaustão de certas fontes naturais e os danos causados ao meio ambiente engendrados pelo produtivismo.
Podemos pensar seriamente no futuro das aposentadorias num horizonte de duas gerações sem abordar hoje as questões mencionadas anteriormente? Esta é a razão pela qual o debate se coloca há mais de 30 anos.
O processo de contrarreforma da previdência municipal em Recife não foi precedido de um efetivo debate com os atores sociais envolvidos (ou, considerando o expressivo quantitativo de servidoras mulheres, deveríamos nomear ‘atrizes sociais’). Realizada durante a pandemia do covid-19 e num espaço de tempo inferior a 30 dias, a contrarreforma atingirá um grupo de servidoras que configura mais que o dobro do grupo masculino. Destas, 4.977 são mulheres professoras, aproximadamente ¼ das servidoras, afetadas pelo aumento da idade mínima e por um tempo de contribuição maior que no sistema nacional. As trabalhadoras do cuidado, por sua vez, representam 44% do total de servidoras, e, além de fazerem o trabalho de cuidado remunerado, são também afetadas pelo cuidado não remunerado, que não é considerado na fixação de critérios de aposentadoria.
As modificações introduzidas não foram precedidas de um estudo atuarial e, por isso, não é possível aferir os reais impactos orçamentários necessários e/ou possíveis dentro da realidade municipal. O maior impacto será sentido pelas servidoras municipais de Recife, ampliando por mais uma geração os efeitos da desigualdade de gênero e da divisão sexual do trabalho.
Uma reforma das aposentadorias pode ser necessária porque não vemos motivo para nosso sistema de proteção social ficar congelado nos próximos 40 anos. A Seguridade Social esteve numa construção viva que levou em conta as transformações da nossa sociedade. Ela precisa de escolhas maiores que devem debater a serenidade e não sob o golpe da emoção suscitada pelos números.
O debate atual não traz resposta à degradação programada do nosso sistema de aposentadoria, mas, ao contrário, aprofunda essa regressão. Para evitar o cenário catastrófico pretendemos os contornos de uma reforma solidária, fundada na satisfação de necessidades sociais prioritárias e sobre a necessidade de redução da duração do trabalho. Essa perspectiva pode ser utópica, mas é necessária, é sustentável de um ponto de vista econômico.
Juliana Teixeira Esteves é PhD em Economia Política no IRES/França, Integrante da Rede Nacional de Pesquisa e Extensão em Direito do Trabalho e Seguridade (RENAPEDTS) e Professora de Direito do trabalho e Seguridade social, da UFPE.
Larissa Ximenes de Castilho é Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Pernambuco e Professora de Direito do Trabalho e Previdência na UNINASSAU/Recife.
Edição: Vanessa Gonzaga