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Artigo | Brasil nas Paralimpíadas e a necessidade de trazer à tona o debate sobre deficiência

O Brasil fecha as paralimpíadas com a melhor campanha de todos os tempos, desde sua primeira participação em 1972

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Beth Gomes, medalhista de ouro e recordista mundial na modalidade de lançamento de disco - Wander Roberto/CPB

Foram 72 medalhas: 22 de ouro, 20 de prata e 30 de bronze. O Brasil fecha as paralimpíadas com a melhor campanha de todos os tempos, desde sua primeira participação em 1972. O que pudemos ver foi uma sequência de corpos extraordinários e reais, executando feitos absolutamente brilhantes. Havia corpos com deficiência com prótese, sem prótese, gordos, magros. Aqueles mesmos que preenchem as dicotomias culturais de inferioridade, transformando e desconstruindo a ideia arraigada de superioridade. 

Existe uma naturalização da deficiência como rejeitada quando se pensa em futuros, a partir de uma ótica de valor, ou seja, o futuro das pessoas com deficiência sempre se encaixa como não reconhecido. Por isso, é extremamente contraditório a imagem de um gigante como Daniel Dias com 27 medalhas, maior medalhista do planeta. Ou ainda o jovem Gabriel Araújo, o qual, além de sair arrastando as provas de natação, coloca seu corpo negro e com deficiência para dançar e, mesmo não sendo a sua intenção, resiste a uma construção social na qual ele provavelmente estaria morto e subnotificado.

 Ainda medalhando nas águas, citamos Gabriel Bandeira; concentrado, veloz e competentíssimo. Pessoa com deficiência intelectual, daquelas que “atrapalhariam o desenvolvimento de outras crianças” como afirmou o Ministro da Educação, Milton Ribeiro, sabe? Carol Santiago, mulher pernambucana que passa por Tóquio com a melhor campanha entre todos os atletas brasileiros, mesmo ainda havendo uma enorme discrepância em números de homens (163) e mulheres (96) participantes. Isso porque nem citei as 28 medalhas do atletismo.

O que fica evidenciado é a movimentação que causa a existência de pessoas com deficiência ocupando espaços. Nas emissoras fechadas – não existe transmissão nas abertas - os narradores esportivos, não apenas se prepararam para explicar terminologias “corretas”, como realizaram audiodescrição e passaram a legendar as imagens e vídeos em seus sites. 

No decorrer das transmissões, a emissora esportiva de canal fechado teve que liberar mais três canais, já que anteriormente estava apresentando os jogos em horário restrito em apenas um deles, enquanto nas olimpíadas existiam quatro canais dedicados ao evento 24h. Também houve um trabalho de ressignificação, o qual, de maneira imediata e sucinta, se desloca da apresentação dos atletas a partir da deficiência para focar em seu histórico esportivo. 

Esse movimento não é algo genuíno, porque implica em estratégias de lucro e apropriação de pauta, muito próprio da terceira via neoliberal. Essas transmissões apresentam acessibilidade como algo simples – que realmente seria, caso difundida - entretanto, a discussão não é alargada em sua essência, por isso, durante o percurso, o que os atletas experimentam é sua garantia de direitos apresentadas por um viés assistencialista de caridade, pautado na lógica do capital funcional que organiza estrategicamente o entendimento desses direitos como gastos e os casos de sucesso como meritocracia. 

Imagina que prejuízo à norma as pessoas entenderem que acessibilidade não depende em todos os momentos de especialistas e que comentaristas com deficiência como Verônica Hipólito e Clodoaldo Silva podem reinventar o jornalismo com muita competência, humor e militância. 

Na verdade, estamos falando aqui de algo que vai muito além de representatividade, é ainda maior do que resistir, trata-se de uma invenção de vida, uma rejeição ao despojo e, longe de ser superação, consiste na implicação absoluta de que a existência das pessoas com deficiência ameaça a ordem em todos os sentidos. Elas descontextualizam a falaciosa construção do corpo “atípico” e escancaram para o mundo que o silêncio grita e, por ironia (ou não), sobe mais vezes ao pódio.

O que as paralimpíadas na verdade representam é justamente a necessidade urgente de trazer a deficiência para a boca, convivência, afetos e construções históricas. É a emergência de sair da condição clinicalizante de reabilitação para fazer uma transição contínua e ameaçadora – para os opressores – de objeto para sujeito. Só assim, teremos a possibilidade de identificar, tanto individual quanto coletivamente, o caráter específico de nossa identidade social e, muito além das expressões corretas e incorretas, poderemos avançar e nos vermos neles e em nós mesmos. 

Corpos com deficiência em evidência é um gesto político que desafia a dominação, a qual mesmo tentando conservá-los anônimos, não conseguem sustentar a sua potência criativa de resistir e existir. Como diria Bell Hooks: a voz liberta e ao erguer a voz – acrescento as mãos, os corpos e os significados – os atletas paralímpicos subvertem a ótica arbitrária de diversidade da “boca pra fora”, a qual reforça a construção de hierarquias sobre as vidas que valem, literalmente, mais ou menos.

Esses atletas não apenas colocaram no peito 72 medalhas, choros, emoções e vitórias, mas levantam a possibilidade de expandirmos a nossa consciência sobre os sistemas interligados e os modos pelos quais reforçamos e perpetuamos essas estruturas. Eles erguem seus corpos em águas, quadras, redes, pódios e mídias, escancarando a necessidade urgente e imediata de lutarmos lado a lado.

*Viviane Sarmento é doutora em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Professora Adjunta da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE), pesquisadora sobre os significados sociais da deficiência e militante pelos Direitos da pessoa com deficiência e pela Marcha Mundial Mulheres (MMM).

Edição: Vanessa Gonzaga