Se estivesse vivo, o educador pernambucano Paulo Freire completaria 100 anos no próximo dia 19 de setembro. Por isso, diante da sua imensa contribuição para a educação, cultura e comunicação no Brasil, dois convidados ajudam a entender o porquê ele se tornou esse personagem tão importante da história do país: Carlos Brandão, antropólogo e escritor do livro "História do Menino que Lia o Mundo"; e Nita Freire, educadora e viúva de Paulo Freire.
As entrevistas, veiculadas na íntegra no programa Prosa e Fato, fazem parte da programação especial do programa, que durante todo o mês de setembro, vai se debruçar sobre a vida, a obra e o legado de Paulo Freire.
Confira os principais trechos das entrevistas:
Paulo Freire como companheiro
Ana Maria Araújo Freire, mais conhecida como Nita, é educadora e passou os últimos dez anos de vida de Paulo Freire como sua companheira. Aos 87 anos, Nita conta como se conheceram. Foi ainda na infância, quando Paulo Freire estudava no colégio do pai de Nita. Daí em diante, o contato se manteve, mas cada um seguiu seu caminho. Ambos casaram com seus primeiros companheiros.
Durante o regime militar (1964-1985), o educador sofreu perseguição e foi exilado do país por 16 anos. Foi só depois de sua volta ao Brasil e de ficarem viúvos, que se reencontraram. Desta vez, Paulo Freire como orientador de dissertação de Nita, da qual a educadora quase desistiu de terminar. Entre um encontro e outro, algo mudou. "Nós transformamos a natureza de nossas relações. De amigo, de professor, de orientador, nós viramos um casal muito amoroso", conta.
Perseguição x valorização
Nita comenta que muitos ficaram sentidos com o fato de Paulo Freire não ter retornado para o Recife após o exílio, mas explica que ele não o fez por questão de segurança. “Naquele tempo ainda estava acontecendo uma perseguição. Menos pública, menos conhecida, mas tinha muita perseguição. E Paulo foi um dos homens que o golpe civil militar queria liquidar”, explica.
Mesmo agora, o governo Bolsonaro é marcado por ataques ao educador e seus ideais. Nita explica o porquê. “Paulo é humanista, gosta do ser humano, tenta criar condições, ideias que possam ser desenvolvidas pra gente ser cada vez mais humano. Bolsonaro é o contrário, ele não deseja que ninguém seja feliz. Ele imita pessoas morrendo por falta de ar na televisão. Um homem desse é totalmente incapaz de gostar de um homem como Paulo ou de seguir os preceitos de Paulo”, enfatiza.
Apesar desses esforços para dizimar os ideais do educador, Nita acredita que seus pensamentos têm sido bem valorizados no Brasil atualmente. Segundo ela, são 42 títulos de Doutor Honoris Causa e 5 de grau acadêmico superior como Professor Emérito. Além disso, a ex-companheira tem recebido convites do Chile, Rio Grande do Norte e em Pernambuco para receber mais títulos. “Ele certamente é o que tem mais títulos no Brasil e muito possivelmente o que tem mais títulos no mundo todo”, conta.
Infância e relação com o Recife
Quem fala sobre a infância de Paulo Freire é Carlos Rodrigues Brandão, antropólogo e professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Além de ter estudado sobre a vida do educador, Brandão também o conhecia pessoalmente. O antropólogo começa a entrevista com uma poesia de Paulo Freire pouco conhecida sobre sua infância e a das crianças pobres no Recife. Ele a escreveu durante seu exílio no Chile. Um trecho dizia:
Recife, onde tive fome
onde tive dor
sem saber por quê,
onde hoje ainda
milhares de Paulos,
sem saber por quê,
têm a mesma fome
têm a mesma dor,
raiva de ti, Recife, não posso ter.
“Paulo Freire vai ao mesmo tempo enaltecendo a cidade amada dele, mas lembrando a infância triste, pobre e recordando que mais pobre do que a infância dele era e segue sendo a infância de tantas e tantas crianças”, comenta o antropólogo.
Brandão já conhecia Paulo Freire através de estudos, mas foi só em 1980 que o conheceu pessoalmente, quando ele havia voltado do exílio e estava morando em São Paulo. Brandão se refere a esse momento como um "segundo exílio". "O sonho de Paulo era voltar ao Recife. Paulo sempre dizia que era um pernambucano que nunca saiu do Recife, embora tenha viajado o mundo".
Neste momento, Freire ingressa na UNICAMP. Como era educador popular e freiriano, Brandão logo procurou o educador na universidade e a partir daí estreitaram uma amizade que durou pelo restante de sua vida. "Foi uma amizade muito querida. Costumo dizer que quem conviveu com Paulo Freire aprendia não só com as ideias e os livros dele, mas com a pessoa de Paulo. Ele vivia realmente de uma maneira muito profunda tudo aquilo que ele escrevia", lembra.
História do menino que lia o mundo
Brandão conta que após a morte do educador, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e várias instituições pensaram em fazer uma série de homenagens e lhe propuseram escrever um livro com a biografia de Paulo Freire. "Eu disse 'olha gente, já tem um monte. Eu mesmo já escrevi mais de uma'", relembra. Até que Roseli Caldart, autora do livro "Pedagogia do Movimento sem Terra", surgiu com a ideia de fazer um livro para crianças. "Ninguém tinha pensado nisso e na hora eu falei que podia ser uma ideia genial". E assim o fez. O livro foi lançado pela Expressão Popular e diversos exemplares foram distribuídos pelo MST.
Legado
Por fim, Brandão conta uma história sobre quando foram consultar Paulo Freire para a construção do Instituto Paulo Freire, ao que ele teria respondido com: “Se for pra me repetir não vale a pena criar esse instituto. Mas se for pra me superar podem criar”. Assim, mais do que reproduzir as ideias do educador, Brandão aponta para a necessidade de ir além e estar em constante aperfeiçoamento com todo o legado freiriano que foi deixado.
Edição: Vanessa Gonzaga