O Brasil registra um estupro a cada oito minutos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Isso significa que, enquanto a Câmara dos Vereadores do Recife fazia a sessão desta terça-feira, 21 de setembro, que durante quase quatro horas debateu o Projeto de Lei Ordinário (PLO) nº 125/2020, para criação da Semana Municipal Contra o Aborto, provavelmente 30 mulheres foram vítimas de estupro no país. A cada aborto legal realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), 100 brasileiras passam por procedimentos malsucedidos.
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Mesmo diante desses dados, a vereadora Missionária Michele Collins (PP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, propôs e insistiu em defender um projeto que, na prática, estimula a criminalização das mulheres, sobretudo as pretas e pobres, maiores vítimas de abortos realizados de forma inadequada, insegura e sem qualquer assistência médica, psicológica ou espiritual.
Graças a uma forte articulação de parte da bancada progressista nos últimos dias, numa votação de 20 contra nove (houve 10 ausências), a matéria foi rejeitada pela Câmara, que vinha se mostrando bastante conservadora em votações anteriores. O clima esquentou durante a sessão virtual, com a presença de mais de 130 pessoas no chat. A vereadora Michele Collins (PP) chegou a chamar as mulheres que abortam de “assassinas”.
Ela foi uma das parlamentares que protestaram na porta do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em 2020, para tentar impedir o procedimento abortivo numa criança de 10 anos que engravidou vítima de estupros sucessivos que sofria do próprio tio. A menina precisou se esconder na mala de um carro para driblar a violência dos atos.
O debate foi pesado entre os parlamentares da esquerda Dani Portela (Psol), Liana Cirne (PT), Cida Pedrosa (PCdoB) e Ivan Moraes (Psol) e parte da bancada conservadora evangélica, com destaque para Fred Ferreira (PSC), Felipe Alecrim (PSC) e Renato Antunes (PSC).
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“Tivemos uma bela vitória hoje”, disse Cida Pedrosa (PCdoB), uma das principais articuladoras contra o projeto. “Houve uma sensibilização para construir um consenso para as nossas bandeiras. Um consenso possível a cada batalha, já que não temos consensos globais”, comentou após a audiência.
“Se a bancada conservadora tem medo da palavra orientação sexual, então a gente muda o nome para bem viver. Por que não se propõe então a Semana de Construção pelo Bem viver?”, provoca. “E é impossível bem viver engravidando aos 12 anos”, reforça a vereadora. Cida insistiu, a todo tempo, que o que estava em votação não era ser contra ou a favor do aborto, mas a vida das mulheres pretas e pobres e o combate a algo que, na verdade, já é proibido por lei.
“Isso é a tribuna de uma casa legislativa, não é um púlpito de uma igreja religiosa”, soltou a vereadora Dani Portela (Psol), para quem um projeto como esse “é um estimulo à criminalização do aborto”. Ela lembrou que, somente em 2019, chegamos a um total de 66.123 casos de estupro e estupro de vulnerável registrados em delegacias de polícia. Desses casos, 85,7% eram mulheres e 57,9% dessas vítimas tinham no máximo 13 anos de idade, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
A vereadora Liana Cirne (PT), por sua vez, chamou a atenção para o fato de o projeto de Michele, na casa desde o ano passado, sequer excepcionava o aborto legal previsto em lei desde 1940, em casos de estupro ou que colocam a vida da gestante em risco. “São casos como o do Cisam que serão reproduzidos (em caso de aprovação)”, colocou. Liana lembrou a pesquisa nacional do aborto de 2010, publicada em 2014, que mostra que uma em cada cinco mulheres abortam, inclusive as católicas e evangélicas, num país que não tem renda básica nem política habitacional.
“Ficamos imaginando o tipo utópico de mulher que aborta e deixamos de olhar para a realidade. É Ingriane que aborta e morre com um talo de mamona no útero sem pedir auxílio espiritual porque sabe como vai ser tratada”, ponderou, em memória da jovem gestante de quatro meses que veio a óbito por conta de um procedimento feito em casa.
O vereador Ivan Moraes (Psol) também se posicionou: “Tenho certeza de que se homens pudessem engravidar, o aborto já estaria legalizado para todo mundo no Brasil há bastante tempo”. “Gravidez a pulso é tortura”, bradou. Ele lembrou que o PLO não passou nas comissões de Mulheres nem Direitos Humanos. Passou e foi aprovado apenas na de Constituição, Legislação e Justiça.
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Os argumentos da extrema-direita
Do outro lado, estava parte da bancada fundamentalista. Os argumentos foram sentido de que “ser a favor do aborto é ser contra a vida”. Michele Collins (PP) tentou defender que o projeto não era contra as mulheres, mas uma proposta de educação e conscientização sobre o tema do aborto.
“O projeto é em defesa da vida sim, em defesa de pessoas, de crianças inocentes que estão no ventre da sua mãe e que morrem por nada. Morrem simplesmente porque mulher não quer ter”, defendeu. E criticou os movimentos sociais feministas: “Infelizmente, quando tem esses movimentos feministas, as jovens que vão são aquelas que gostam e fazem aborto. E fazem aborto por nada, parece que vivem trabalhando para isso, o trabalho delas é esse, ir contra”, afirmou.
Michele colocou à mesa a lei da adoção dizendo que “É muito fácil, tem a criança e dá a criança, mas não mata a criança. Não seja uma assassina, mulher”, disse a vereadora.
Na sessão, também apareceram frases como “O que me incomoda é saber que muitas crianças não tiveram a oportunidade de nascer”, do vereador Renato Antunes (PSC); “Crianças brutalmente assassinadas no útero” e “O maior destruidor do amor e da paz é o aborto”, do parlamenta Felipe Alecrim (PSC); e “falar em aborto é falar em morte, destruição de família e destruição da sociedade”, do vereador Fred Ferreira (PSC).
Como votaram os vereadores
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Contra: Aderaldo Pinto (PSB), Andreza Romero (PP), Cida Pedrosa (PCdoB), Dani Portela (Psol), Doduel Varela (PSL), Eriberto Rafael (PP), Fabiano Ferraz (Avante), Felipe Francismar (PSB), Hélio Guabiraba (PSB), Ivan Moraes (Psol), Joselito Ferreira (PSB), Júnior Bocão (Cidadania), Liana Cirne (PT), Marco Aurélio Filho (PRTB), Natália de Menudo (PSB), Paulo Muniz (Solidariedade), Rinaldo Júnior (PSB), Samuel Salazar (MDB), Tadeu Calheiros (Podemos) e Zé Neto (Pros).
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A favor: Alcides Cardoso (DEM), Ana Lúcia (Republicanos), Chico Kiko (PP), Felipe Alecrim (PSC), Fred Ferreira (PSC), Júnior Tércio (Podemos), Luiz Eustáquio (PSB), Michele Collins (PP) e Renato Antunes (PSC).
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Ausentes: Alcides Teixeira Neto (PSB), Almir Fernando (PCdoB), Davi Muniz (PSB), Dilson Batista (Avante), Eduardo Marques (PSB), Jairo Brito (PT), Osmar Ricardo (PT)*, Waldomiro Amorim (Solidariedade) e Wilton Brito (PSB).
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O presidente da Câmara, Romerinho Jatobá (PSB), só vota em caso de empate.
* O vereador Osmar Ricardo está de licença médica por causa de problemas cardíacos.