Repercutiu nacionalmente o caso do motorista que, no Recife, avançou sobre manifestantes e atropelou uma advogada ao fim do protesto que pedia o impeachment do presidente Jair Bolsonaro. A advogada Priscilla Rocha, que está acompanhando o caso junto à vítima (que pede para não ser identificada), considera que qualquer abrandamento no processo contra o motorista pode gerar um precedente perigoso para violências do tipo se repetirem contra manifestações políticas. Mas ela afirma que não há intenção de acusar o condutor de ter tomado a atitude por possíveis divergências ideológicas.
Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco, Priscilla Rocha reafirma que o caso foi uma tentativa de homicídio e teme que fatos do tipo se repitam no futuro. “O que houve foi uma afronta ao direito de liberdade de expressão e liberdade de protesto. Se isso ficar impune pode ser que mais gente se sinta no direito de não respeitar as manifestações que bloqueiam o trânsito por alguns minutos”, diz ela, que assim como a vítima, integra a Comissão de Advogados Populares da OAB-PE. “Pode ser um precedente muito perigoso nesse momento de polarização. Outra pessoa pode repetir essa ação usando o argumento de que se sentiu acuado”, afirma, lembrando a alegação da defesa do condutor.
Rocha conta que não pretende incluir no processo qualquer questão sobre possíveis motivações ideológicas para o atropelamento. “Isso não é algo relevante para nós. Queremos evitar a partidarização, afastar isso o máximo possível”, diz ela. Os fatos, segundo a advogada, são: “havia uma manifestação, pessoas ajudando a fazer o bloqueio e pedindo que os motoristas esperassem e houve o desrespeito a esse bloqueio e aos manifestantes, que teve como consequência o atropelamento”, pontua.
As testemunhas ouvidas pela polícia até agora não trazem relatos conclusivos sobre motivação política. Afirmam que houve discussão, xingamentos entre o motorista e manifestantes, mas não há certeza se na troca de insultos houve menção a Bolsonaro ou algo do tipo. “Houve essa discussão, ele teria afirmado que é policial, teria mostrado uma arma e em seguida avançou com o carro em cima da vítima”, conta Priscilla. “Não tem como negar que é uma questão política, já que isso aconteceu num ato político, mas vai além disso”, diz ela, reafirmando o direito de manifestação.
Investigação
Ainda na tarde do sábado (2), logo após o atropelamento, as advogadas foram à delegacia fazer a denúncia, a Polícia Civil abriu um inquérito e até o momento o delegado Elielton Xavier ouviu 9 testemunhas, incluindo o condutor Luciano Matias Soares, de 38 anos. A vítima ainda não foi ouvida, pois segue na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Português. Nesta quarta (6) foi realizada uma perícia no veículo do condutor.
O delegado já solicitou à Secretaria de Defesa Social (SDS-PE) as imagens das câmeras instaladas nos semáforos próximos ao local do atropelamento, mas essas imagens ainda não foram divulgadas publicamente e nem para as partes envolvidas no caso. Após colher os depoimentos e provas, o delegado vai tipificar o crime de acordo com sua avaliação. O caso ainda passa pelo Ministério Público (MPPE), que pode analisar o inquérito e acatar a tipificação ou ter uma avaliação diferente. O processo na Justiça depende dessas das avaliações do delegado (Polícia Civil) e do MPPE.
A advogada da vítima diz ter expectativa de que o inquérito se encerre antes do prazo legal de 30 dias (até 1º de novembro). “Que ele ouça o máximo de testemunhas, tenha acesso ao máximo de acervo probatório e esperamos que ele entenda pela tipificação do crime de tentativa de homicídio, para que o condutor seja responsabilizado. Esse discurso de ‘descuido’ ou ‘medo’ não se justifica e os relatos das testemunhas apontam no sentido contrário”, afirma Priscilla Rocha.
A advogada adiciona dois qualificadores: a vítima não teve chance de se defender e o crime teria sido cometido em “perigo comum”, pois apesar de uma única vítima, o condutor avançou sobre o bloqueio e poderia ter atingido outras pessoas. Rocha menciona ainda a omissão de socorro por parte de Luciano Soares. “Também visamos outras questões de cunho indenizatório, já que a vítima vai precisar ficar afastada do trabalho e há uma previsão de que ela passe muito tempo sem andar. Mas isso será num momento posterior. Agora estamos focadas no inquérito”, diz a jurista.
A defesa
O administrador de empresas Luciano Matias Soares dirigia um Jeep Renegade preto de placa QYJ2E95. Ele fez um boletim de ocorrência acusando a advogada atropelada de ter depredado seu veículo. Em entrevista à TV Globo, Soares pediu desculpas e afirmou que seu carro teve amassos e um vidro quebrado por ação dos manifestantes. “Começaram a dar pancadas no carro, fiquei com medo. Me senti agredido”, diz Luciano.
O condutor admite ter dirigido 50 metros com a advogada pendurada no capô, admite ter derrubado ela ao frear, mas alega não ter visto que passou por cima da perna da advogada. “Eu fui embora. Quando olhei pelo retrovisor, estava todo mundo atrás de mim”. Ele também culpou a advogada pelo atropelamento e disse que o momento de tensão impediu que prestasse socorro. “Se ela não tivesse se pendurado no capô, nada disso teria acontecido. E se eu tivesse parado para socorrer, seria espancado”, diz ele.
O advogado de defesa é Sérgio Gonçalves. Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco, ele conta que Luciano Soares está colaborando com a investigação e que é do interesse deles que a Polícia Civil faça um bom trabalho. “Deixamos o carro à disposição do delegado para a perícia, mas certamente ele deve requerer algumas diligências ao Instituto de Criminalística (IC) para a detecção de pólvora dentro do carro – já que alegam que ele usou uma arma –, também sobre o vidro quebrado e o para-brisa também quebrado, que o IC tem como afirmar se foi quebrado recentemente ou se já estava”, diz Gonçalves.
“Esse processo deve demorar um pouco, porque o IC não tem tantos peritos. Mas é um caso de grande repercussão e o Governo do Estado [a SDS] deve ter mobilizado para a resolução desse caso – e isso é do nosso interesse. Deixamos o carro à disposição com o intuito de que sejam feitas todas as diligências possíveis”, completa o advogado. “Luciano desde o princípio enfrentou de frente a todas as acusações, não se escondeu da imprensa. Pedimos que seja feita a Justiça”, completa ele. O advogado conta que a oitiva de Soares com o delegado durou entre 1h30 e 2h, com Luciano respondendo a todas.
Ele reafirma a versão de que o atropelamento teria sido uma reação motivada pelo “pânico” do condutor após ter seu veículo atacado pelos manifestantes. “O rapaz foi se vacinar pela manhã, buscou a mãe, depois passou no frigorífico em Afogados. Na volta, pelo centro do Recife ele se depara com a manifestação”, conta Sérgio Gonçalves.
“Ele perguntou a um manifestante se haveria bloqueio total da via e se ele poderia passar. Um deles autorizou a passagem, mas para a surpresa de Luciano, uma mulher – que é a advogada – se postou em frente ao carro informando que naquele momento ele não poderia passar”, continua o advogado. “Imagine você: uma pessoa negra, num carro sem fumê, sozinho, com a advogada batendo no capô, manifestantes batendo e chutando o carro dele, quebrou o para-brisa, arranhou e amassou o carro – a perícia está aí para comprovar. Ele entrou em pânico”, conclui o advogado de defesa.
Luciano Soares nega que o atropelamento tenha sido motivado por questões políticas e disse não ter “bandeiras políticas”. Ele já foi candidato a vereador pelo Partido Social Cristão (PSC) em 2012, no Recife, quando obteve 419 votos. O PSC é um dos partidos mais conservadores do Brasil e é alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, alvo da manifestação de sábado.
O caso
Por volta do meio-dia do último sábado (2), quando se encerrava a manifestação de rua pedindo o impeachment do presidente Jair Bolsonaro, um grupo de manifestantes estava parou o trânsito na Avenida Martins de Barros, bairro de Santo Antônio, para que outros manifestantes conseguirem atravessar a avenida. Um dos veículos parados era o de Luciano Soares.
Segundo relatos, houve um bate-boca entre ele e os manifestantes. Soares avançou com o carro. A advogada estava em frente ao veículo e segurou no capô. Ele conduziu o veículo por cerca de 50 metros com ela pendurada, em seguida freou, derrubando-a no chão. Por fim passou por cima da perna da advogada e foi embora sem prestar socorro.
A vítima está hospitalizada, precisou levar quatro pontos na cabeça e foi submetida a uma cirurgia no tornozelo, já que teve os ligamentos partidos. A família pede que o nome dela não fosse divulgado, por medida de segurança.
Em consulta ao site do Detran-PE, o veículo de Luciano Soares foi multado oito vezes entre agosto de 2020 e julho de 2021. As infrações foram por trafegar na faixa exclusiva para ônibus, trafegar na contramão, conduzir em velocidade acima da permitida (2x), avanço de sinal vermelho, uso de celular enquanto dirige e estacionamento em local proibido. O automóvel também tem dívidas de IPVA e taxas de licenciamento e bombeiros de 2021.
Edição: Vanessa Gonzaga