58,5% das agressões físicas sofridas por pessoas com deficiência ocorrem em casa
[Audiodescrição: Em fotografia aparece em primeiro plano da altura da cintura acima, realizando o sinal de obrigada em Libras, Michelle Bolsonaro. Ela é uma mulher branca, com cabelos claros na altura do ombro presos pela metade e tem olhos castanhos. Usa um vestido rosa caído nos ombros. Em segundo plano, aparece Jair Bolsonaro. Ele está olhando para Michelle Bolsonaro à frente. É um homem branco, grisalho, tem olhos azuis, usa terno e gravata em cor preta e uma blusa branca em contraste. Está com a faixa presidencial. Ao fundo, em turvo, está o palanque de posse. Fim da descrição.]
Era 01 de janeiro de 2019. Acontecia a cerimônia da posse do presidente da República. Nesse momento, a primeira-dama Michelle Bolsonaro sobe no palanque, como foi anunciado em vários jornais, quebrando o protocolo por realizar um discurso em Língua Brasileira de Sinais. Orquestrado pelo movimento das suas mãos, traduzido em tom emocionado de voz pela intérprete de Libras, era proferido ao Brasil inteiro o seguinte pronunciamento:
“Agradeço a Deus essa grande oportunidade de poder ajudar as pessoas que mais precisam. [...] É uma grande satisfação, um privilégio, poder contribuir e trabalhar para toda a sociedade brasileira. As eleições deram voz a quem não era ouvido e a voz das urnas foi clara: o cidadão brasileiro quer segurança, paz e prosperidade. Um país em que sejamos todos respeitados. Eu gostaria de modo muito especial de dirigir-me à comunidade surda, pessoas com deficiência e a todos aqueles que se sentem esquecidos (leia-se que foi usado o sinal em Libras de desprezo, mas traduzido como esquecimento). Vocês serão valorizados e terão seus direitos respeitados. Tenho esse chamado no meu coração e desejo contribuir na promoção do ser humano”.
Assim, inicia-se um processo de valorização que mais se assemelha à rejeição. Um dos “desejos” defendidos pelo governo foi a construção do decreto 10.502/2021, o qual banhado pela falsa ideia de solidariedade, reforça o caráter assistencialista de apagamento dos “desprezados”.
Este autoriza o retorno das Escolas Especiais – dissimulando reforços antigos de encarceramento pelo letreiro sorrateiro de equidade - duramente combatidas pela militância das pessoas com deficiência há anos, por violar os seus direitos éticos e políticos de acesso, permanência e construção da educação.
Para deixar tudo ainda mais violento, o documento abastece de mais significado a naturalização de que essas pessoas são incapazes de responder por si, ao orientar que as decisões acerca das suas respectivas vidas devem ser tomadas por seus familiares ou responsáveis, como mais uma vez pronunciou as mãos de Michelle Bolsonaro: “A PNEE fortalece o direito de escolha da família”, desconsiderando o fato de que, segundo o atlas da violência (2021), 58,5% das agressões físicas sofridas por pessoas com deficiência ocorrem em casa e que existem problemas estruturais muito complexos que determinam uma sociedade na qual estes tornam-se vulneráveis.
Seguindo o chamado no coração da primeira dama, o então Ministro da Educação, Sr. Milton Ribeiro, no dia 09 de agosto de 2021, afirmou que quando um aluno com deficiência é incluído em salas de aula comuns, ele não aprende e ainda "atrapalha" a aprendizagem dos colegas. Após repercussão negativa, este tenta justificar-se com a seguinte fala: "nós temos, hoje, 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência. O que o nosso governo fez: em vez de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo 'inclusivismo', nós estamos criando salas especiais para que essas crianças possam receber o tratamento que merecem e precisam".
Continuando a busca por dar voz a quem mais precisa (contém ironia), essa semana, foi revogado o art. 11 inciso IX da Lei Brasileira de Inclusão que obrigavam os gestores públicos a cumprirem as exigências de acessibilidade sob pena de incorrer em ato de improbidade administrativa, o que acarreta em um grande incentivo para as obras continuarem sendo realizadas sem nenhum tipo de acessibilidade.
Há anos as pessoas com deficiência e sua militância organizada tentam romper as concepções de infantilização, assistencialismo e caridade em relação às suas vidas e tentam instituir um olhar sociológico nessa discussão. Um caminho que se delineia entre provar a sua existência, em meio a ideia de capacidade, até chegar no criticismo que institucionaliza suas “possibilidades de vida”.
Muitos dos esforços enquanto militância estavam voltados para trabalhar a melhoria desses acessos e permanências em torno de tais pautas, mas ao que parece, aqui a ordem é outra. Disfarçada pelo sinais de beijos e “I love you”, a intenção é certeira: apagar, porém, sorrindo.
A questão é que o assistencialismo e o viés de caridade que marcam o “coração” dessa política de extermínio, de longe, tentam construir um compromisso ético com o povo com deficiência. Nesse caso, o sinal em Libras de desprezo executado no discurso de posse agora cai muito bem, porque é o que encontramos no desamor, especialmente no que vem em forma de princesas caridosas vestidas de rosa.
Isto porque para se construir, de fato e coletivamente, o amor, um dos primeiros requisitos é o desapego e desconstrução da obsessão pelo poder e pela dominação, movimento que nada dialoga com a atual conjuntura posta.
Uma ética amorosa, coletiva e social, precisa ter sua base alicerçada no respeito e nas práticas colaborativas, as quais deveriam fundir-se como fenômeno coletivo e não em flerte com a segregação. Engana-se quem exalta que a caridade discursada sobre o extermínio que estamos vivendo “abre as janelas do paraíso”, porque na sociedade capitalista e capacitista, ela só reforça os abismos, os quais dividem aqueles que “podem e os que não”, além de manter viva a ideia sobre o fato de pessoas com deficiência precisarem se contentar em viver gratas por quaisquer migalhas lançadas.
No Brasil da pátria caridosa, a defesa da prosperidade e dos corações bondosos desenham as formas da imagem (ou não) de mais uma pessoa com deficiência humilhada, negada, infantilizada, rejeitada dos espaços sociais, violentada e morta.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal
Edição: Vanessa Gonzaga