A fome, no Brasil de hoje, tornou-se um crime aos olhos de parte do poder judiciário.
Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. (Maria Carolina de Jesus)
Em 1938, o escritor alagoano Graciliano Ramos publicou o romance "Vidas Secas", o qual narrava a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos, obrigada a se deslocar de sua terra natal para fugir da seca e da fome. Em dado momento da trama, Fabiano, o patriarca da família, chegou a ser preso, inclusive. Todos viviam em condições sub-humanas, chegando a serem comparados (e a comparar-se) a animais.
Quase 90 anos passaram da publicação deste clássico da literatura brasileira, e hoje estamos vendo a história se repetir na vida real. Pulamos para o ano de 2021: o Ministério Público do Rio Grande do Sul denunciou algumas pessoas que, por estarem em situação de rua na cidade de Uruguaiana, furtaram lixo (isso mesmo, restos de comida) presentes no setor de descartes de um supermercado. Segundo o órgão ministerial, tais pessoas cometeram furto. O magistrado absolveu-os, obviamente. Não satisfeito com a absolvição, o parquet recorreu da decisão, acreditando que tais pessoas eram criminosas, ao invés das vítimas, por estarem revirando lixo para saciar a fome. A fome, no Brasil de hoje, tornou-se um crime aos olhos de parte do poder judiciário.
Um mês atrás, a história se repetiu. Dessa vez, em São Paulo. Uma mãe de cinco filhos furtou coca-cola, miojo e suco em pó num supermercado na Vila Mariana, em São Paulo, por não ter o que “dar de comer” para os seus filhos. A justiça, que além de cega também desconhece a realidade do povo brasileiro, negou a liberdade provisória da acusada, com anuência do Ministério Público. Após recurso interposto pela Defensoria Pública, o TJSP manteve a decisão de prisão. O caso precisou chegar até o STJ para que a acusada conseguisse um Habeas Corpus.
Tais fatos vêm se tornando cada vez mais frequentes no país. Após a implantação de inúmeras políticas públicas de combate à pobreza desde 2003 até meados de 2016, o Brasil vinha diminuindo consideravelmente o número de pessoas em extrema pobreza. Em 2014, o Brasil deixou o Mapa da Fome após o amplo alcance do Programa Bolsa Família, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) baseado em dados de 2001 a 2017. O referido estudo mostrou que, no decorrer de 15 anos, o Programa reduziu a pobreza em 15% e a extrema pobreza em 25%. Porém, desde 2018 o Brasil voltou a ter o “monstro” da fome se alastrando perante boa parte da população, após o desmonte e o sucateamento de políticas públicas destinadas ao combate à pobreza e à garantia do emprego e da renda dos mais vulneráveis.
Desde o início da pandemia, a situação piorou. Atualmente, cerca de 9% dos brasileiros está em situação de extrema pobreza, o que significa a quantidade aproximada de 19 milhões de pessoas. Esse número é resultado do sucateamento dos empregos formais e, pior, do alto índice de desemprego desde o início da pandemia; além da inflação em alta e do descaso do atual governo com programas de combate à fome. O geógrafo e médico pernambucano Josué de Castro, dizia, há quase cem anos, que a fome é um flagelo fabricado pelos homens contra outros homens. Essa é uma questão de política social e não de escassez de alimentos ou de fenômenos naturais. E qual o papel do Judiciário diante desse cenário? Denunciar pessoas que estão em situação de extrema pobreza, a ponto de furtar para comer? Não seria a fome o maior de todos os crimes?
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga