Danielle Abravanel, 29 anos, caminha entre moradias improvisadas de lonas e bambu até chegar à maior estrutura do lote, onde foi montada uma cozinha. É lá que ela ajuda a preparar as refeições que alimentam - a partir de doações - 350 famílias que ocupam há dois meses um terreno até então inutilizado próximo à Rua Barão de Souza Leão, no bairro nobre de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife.
As histórias de quem vive nesse espaço se entrelaçam em algum ponto no retrato de um Brasil piorado após a pandemia do novo coronavírus. Sem casa própria e sem emprego formal, o custo do aluguel até mesmo de um barraco se tornou insustentável para eles se manterem nas comunidades em que viviam. A Ocupação 8 de Março, mobilizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), virou o novo lar de cerca de mil pessoas que moravam nas comunidades do entorno e lutam pelo direito à moradia.
Foi assim com Danielle, mulher negra e trans que deixou sua antiga casa em Entra Apulso, maior comunidade de Boa Viagem. “Eu era uma pessoa que pagava aluguel, e por causa da pandemia, não tinha como me manter. A gente sabe que, por ser uma garota trans, somos discriminadas até para arrumar um emprego”, conta ela, acrescentando que sua renda vem das faxinas que realiza. Perguntada sobre o que deseja da ocupação, Danielle relata: “Minha esperança é ter minha moradia digna, dormir, acordar e saber que estou sob meu teto. Para mim vai ser a melhor coisa do mundo.”
A aspiração é a mesma entre os ocupantes. Thalia Cristina de Souza, 22 anos, é uma das muitas mães solos do 8 de Março. Ao lado dos dois filhos - Davi Miguel, 2 anos, e Isaac Matheus, 5 meses -, ela conta à reportagem que precisava pedir dinheiro no sinal para complementar a renda dos trabalhos informais e sustentar o lar. Hoje, ela está desempregada. “Eu costumava fazer faxina, trabalhei em banca de jogos. Meu último trabalho era entregando almoço, mas veio a pandemia e (a dona) disse que não precisava mais”, diz.
Recém-cadastrada no extinto Bolsa Família, o único benefício com que Thalia conta agora é o Auxílio Emergencial, cuja última parcela foi depositada este mês. “Estou aqui desde o primeiro dia de ocupação. O dinheiro do auxílio que eu usava para pagar aluguel agora está indo para os meus filhos, comprar fralda, leite”, revela. “Não é muito fácil (morar aqui), mas é melhor que estar no aluguel e não saber o que vai comer no outro dia.”
Marlete Queiroz, 53 anos, vivia com o filho no bairro do Jordão, e também veio à ocupação com o desejo de conquistar uma casa própria. Trouxe consigo suas netas, de quem ajuda a tomar conta. “Eu não quero dinheiro, quero um lugar pra viver. Uma casinha pra mim, nem que seja de madeira. É isso que eu espero”, fala ela, que vive com R$ 150 mensais que vinham do Programa Bolsa Família.
Apesar de as condições de habitação no lote ainda não serem as ideais, a construção de casas para as famílias é a demanda principal do MTST nesse momento. Segundo a coordenadora nacional Vitória Genuíno, o movimento tem um projeto pronto elaborado por arquitetos que prevê a construção de pelo menos 300 moradias alternativas no terreno, para caso ele seja concedido e desapropriado pela Prefeitura do Recife.
Mesmo assim, ela diz que o MTST está aberto para diálogo se o município apresentar outra solução, como a concessão de terreno distinto na Zona Sul. “Nossa briga é por política pública habitacional para essas famílias. Nós não nos fechamos para nenhum acordo. Mas a gente entende que tem que ser uma saída habitacional, e não simplesmente o pagamento de auxílio moradia, porque não acolhe as necessidades das famílias”, afirma.
Para o grupo, o benefício não seria suficiente para a subsistência dessa população, tendo em vista a alta no custo de vida e nos preços dos alimentos. “Recife é a segunda capital com maior valor de aluguéis e a gente está vendo esse aumento até nas comunidades, onde se costumava conseguir casas em valores mais baixos. Hoje, é R$ 400 para cima um quartinho”, revela.
“Esse processo de ocupação é estratégia de luta, a gente ocupa para denunciar esses espaços vagos que servem para gerar um futuro lucro enquanto existem milhares de famílias em situação de vulnerabilidade, morando em palafitas, casas de barraco. O direito à propriedade não se sobressai ao direito à moradia”, afirma a dirigente.
Despejo Zero
As famílias estão ocupando o imóvel desde o dia 4 de setembro. O terreno que estava vazio e parado pertence à incorporadora Anbar Participações e acumula quase R$ 500 mil em dívidas com o município e a União. Só junto à prefeitura, de acordo com o último monitoramento feito em agosto pelo MTST, o valor chega a R$ 294.450,85.
“É um terreno que acolhe todas as características judiciais para uma desapropriação, inclusive já tinha ido para leilão pela própria prefeitura. A gente tem registros de que lá não tem nada há 20 anos, serve puramente pra especulação imobiliária. Moradores (do entorno) afirmam que não existe nada há mais de 30, 40 anos nesse terreno”, completa Vitória.
Ainda em setembro, o proprietário entrou com um pedido de reintegração de posse, que foi deferido por um juiz de primeira instância em 28 de setembro, determinando que as famílias teriam que deixar a ocupação até o dia 21 de outubro. Para impedir o despejo dos ocupantes, o movimento realizou bloqueios de trânsito e um protesto na sede da prefeitura no último dia do prazo. “Com isso, a gente conseguiu um acordo para cadastrar as famílias no CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) e a disposição deles de, através do procurador do município, dialogar com o desembargador para suspender o prazo”, conta a coordenadora.
Paralelamente, o corpo jurídico do MTST se articulou com a Defensoria Pública do Estado de Pernambuco para enviar ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Reclamação Constitucional solicitando a suspensão da reintegração de posse até o fim da pandemia. O pedido foi feito com base na ADPF nº 828, decisão do STF que proibiu por seis meses “medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis”.
Apesar de a ADPF se referir apenas a imóveis ocupados antes de 20 de março de 2020, o ministro Edson Facchin acolheu a reclamação quando julgou a matéria no último dia 21. Assim, a permanência das famílias na ocupação está garantida até o fim da pandemia.
A Prefeitura do Recife informou que, desde 26 de outubro, as famílias estão sendo atendidas na Central de Cadastro Único do Recife. “Até então, já foram atendidas 275 das 350 famílias que o MTST informou à gestão municipal que existiam na Ocupação”, diz, em nota. O texto ainda fala que o município promoveu “quatro reuniões com representantes do MTST e lideranças para ouvir os pleitos e buscar soluções para a situação da ocupação. Um dos encontros, inclusive, contou com a presença de gestores do Governo de Pernambuco”.
Por fim, a Prefeitura lamentou “a ausência de um efetivo programa federal para construção de habitação de interesse social no Brasil, o que acaba direcionando aos governos municipais, o ente federado mais frágil da federação, um problema que requer uma séria política de estado, de estímulo e fortalecimento a esse tipo de moradia no País.”
Edição: Vanessa Gonzaga