É comum que pessoas, em ambientes onde se sentem “seguros”, fiquem mais à vontade para expressar seus pensamentos. E muitos grupos de WhatsApp se tornaram esses espaços “seguros” – mas não para todos, já que muita gente aproveita o espaço para compartilhar ideias e conteúdos com discriminação de gênero, sexualidade, etnia e classe social. E o grupo “Buteco da Saúde” é um desses, onde médicos e médicas se sentem à vontade para rir e debater material discriminatório.
O grupo “Buteco da Saúde” reúne 191 profissionais de medicina dos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Pará, Amazonas e outros estados brasileiros. Um dos membros mais ativos é a médica pernambucana Suzana de Souza Esteves (CRM 5861-PE). Formada na turma de 1979 da Universidade de Pernambuco (UPE), a profissional é especializada em medicina do trabalho (RQE 2901).
No grupo de whatsapp a médica pernambucana compartilha imagens comparando, por exemplo, o ato de defender a peça teatral onde uma atriz transexual fez o papel de Jesus, ela compara com o ato de criticar o fato de o filho do “Superman” ser gay. “Apoiar Jesus gay é liberdade de expressão, mas criticar herói LGBT é homofobia? Ditadura!”, diz a imagem.
A médica também usa figuras ridicularizando transexuais, representados na imagem da Branca de Neve; e ironizando pautas do movimento negro, ao dizer que o biscoito “Negresco” teria que mudar de nome para “Afrodescendesco”. E comenta: “estamos caminhando para um estado de ‘cala-midade’. Calar para sobreviver à imposição de opinião”.
A reportagem perguntou à advogada criminal Carina Acioly sobre o conteúdo. Ela vê margem para judicialização dos posicionamentos. “Na minha interpretação, esse do ‘negresco’ se enquadra no crime de racismo”, diz ela, que explica a diferença para outros crimes do tipo. “A injúria racial, grosso modo, é direcionada a uma pessoa específica, como quando alguém chama outra de ‘macaco’. Mas o crime de racismo é quando a ofensa é direcionada ao coletivo, à comunidade negra de modo geral”, aponta.
Já sobre a possibilidade de homofobia ou transfobia, Acioly avalia que, apesar do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2019, de que atos de homofobia podem ser enquadrados na lei do racismo, a acusação seria frágil. “Como advogada criminalista, acho que não dá para criminalizar uma conduta se não existe uma lei que diga que aquilo é crime. Se não existe previsão legal para isso, como vou chegar na delegacia e dizer que a pessoa deve ser enquadrada na lei de homofobia?”, lamenta.
Carina Acioly considera difícil a associação à lei do racismo e explica que, no Brasil, a omissão do legislador (no caso a Câmara Federal e o Senado, por até hoje não terem aprovado alguma lei sobre o tema), essa omissão não pode ser justificada para adotar lei semelhante – no caso a do racismo – visando prejudicar o réu. “O nosso ordenamento jurídico proíbe a analogia ‘in malam partem’. Só se pode usar uma lei analogicamente se for para beneficiar o réu ou investigado”, defende ela.
Mas a advogada aponta outro caminho. “Do ponto de vista cível é sim cabível uma responsabilização, por danos morais, por parte daquelas pessoas que se sentirem ofendidas”, avalia.
Questionada se processos do tipo seriam uma violação da liberdade de expressão, Acioly nega. “Não existe direito absoluto. Nem a vida é um direito absoluto –você pode matar outra pessoa em caso de legítima defesa e existe pena de morte em caso de guerra declarada. Se nem a vida, que é um bem supremo protegido pelo ordenamento jurídico, se nem ela é um direito absoluto, porque a liberdade de expressão vai ser?!”, avalia.
E explica que as pessoas podem falar o que quiserem, mas também podem ser responsabilizadas pelo que falam. “A Constituição diz que você tem o direito de se expressar livremente. Mas se alguém se sentir ofendido pelas suas palavras, terá o direito de resolver na Justiça, para ter o direito à honra ou à imagem preservados. É o Judiciário que vai dizer qual direito vai prevalecer”, resumiu.
Perguntada se as conversas, num grupo com 190 pessoas, poderia ser considerada um espaço privado, ela negou. “O espaço da rede social não é mais considerado privado. Se você comete uma calúnia ou injúria, seja no Whatsapp, Twitter ou Instagram, aquilo é considerado espaço público para efeitos legais”, diz a advogada, adicionando ainda que alguns crimes têm suas penas agravadas se tiverem sido cometidos nas redes sociais.
A médica Suzana de Souza Esteves é concursada na rede pública estadual, lotada no Hospital Getúlio Vargas, no bairro do Cordeiro, Recife. Mas desde abril de 2020 está atendendo à distância através do app “Atende em Casa”.
A reportagem entrou em contato com a médica, por telefone, mas ela preferiu não conversar com a reportagem. “Só após instruída pelo meu advogado, inclusive para que o que eu falar não seja distorcido e colocado fora de contexto. Infelizmente [...] a imprensa hoje em dia, com poucas exceções, é muito tendenciosa. Põe a ‘verdade’ onde deseja”, avaliou.
As imagens das conversas foram enviadas ao Brasil de Fato Pernambuco por um dos membros do grupo “Buteco da Saúde”. Ele e outros poucos integrantes do grupo revelaram incômodo com aquele tipo de conteúdo. O médico pediu que seu nome não fosse publicado, mas aceitou conversar com a reportagem. Ele afirma ter enviado o conteúdo das conversas também para a Defensoria Pública de Pernambuco (DPE), Assembleia Legislativa (Alepe) e outros meios de comunicação
Ele considera que algumas posições reveladas no grupo podem sim afetar o exercício da medicina. “Entendo que as pessoas tenham posicionamentos diferentes, mas a forma que muitos profissionais escolhem para defender suas posições políticas acaba contaminando o exercício da profissão”, diz o médico. “Fiz essa denúncia porque estava chegando no limite do absurdo”, completa ele, mencionando ainda que alguns profissionais do grupo se colocam contra a vacinação.
O médico diz que é muito comum, naquele grupo, o uso de todo tipo de “comentários racistas, transfóbicos e até misóginos”. “Tem preconceito com pobre, também. Tudo para defender sua posição política”, diz ele. O médico acha que os radicais não são maioria, mas diz haver um grande número de profissionais da medicina que se reúnem em grupos do tipo.
Ele, que garante ter anulado o voto no 2º turno da eleição de 2018, afirma que os posicionamentos são consequência de um alinhamento total com as ideias do presidente da República. “Para eles só existem duas posições diferentes: ou você é bolsonarista – e tem que ser radical –, ou você é petista. Não votei em Bolsonaro e não quis votar no PT, mas eles insistem em me chamar de petista, de ‘viúva do Lula’. Nem de esquerda eu sou”, comenta.
A classe média brasileira, majoritariamente branca, tem espaços “reservados” para si onde interagiam apenas com setores mais abastados da sociedade. E um desses espaços era o curso de medicina. Mas na última década a classe média viu pessoas pobres e negras conquistarem esses espaços. O médico denunciante considera que a perda desse “privilégio” que possuíam em relação aos pobres é o que motiva os ataques preconceituosos. “São poucos os médicos que são realmente ricos. E pouquíssimos que são pobres. A maioria é classe média-média. E eles têm mostrado incômodo com essa maior presença de negros nos cursos de medicina, por exemplo”, avalia o profissional. “E eles reagem adotando posições desse tipo”, reclama.
O Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM), apesar de atualizado em 2020, não traz qualquer menção a discriminações de cunho étnico, racial, de orientação sexual ou de gênero. O CFM é um dos órgãos que apoia publicamente o presidente Jair Bolsonaro e legitimou a distribuição de medicamentos comprovadamente sem eficácia contra a covid-19.
A Lei Estadual nº 6.123/1968, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis de Pernambuco, menciona que se o profissional for afastado durante processo envolvendo um crime inafiançável, este profissional passará a receber apenas um terço do seu salário. Caso seja absolvido, terá ressarcido a diferença que deixou de receber. O racismo é um crime inafiançável.
O Brasil de Fato Pernambuco enviou imagens das conversas para o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) e para a Secretaria Estadual de Saúde (SES), perguntando se consideravam o conteúdo discriminatório ou se é passível de alguma posição do órgão. Até o fechamento desta matéria o Cremepe não nos respondeu.
Já a Secretaria de Saúde afirma, por meio de nota enviada à reportagem, que o órgão “não compactua com qualquer tipo de discriminação de gênero, raça, cor ou orientação sexual”; destaca possuir políticas específicas para a população LGBTQIA+ desde 2015, com capacitação de profissionais sobre o tema; e conclui que condutas irregulares de profissionais em exercício devem ser formalizadas através da Ouvidoria da Saúde e conselhos de classe (no caso o Cremepe). Confira a nota:
“A Secretaria Estadual de Saúde informa que não compactua com qualquer tipo de discriminação de gênero, raça, cor ou orientação sexual. O órgão ressalta que atua permanentemente no combate a esse tipo de prática a partir de ações realizadas pelas coordenações específicas voltadas para as políticas de saúde relacionadas às populações negras e LGBTQIA+, inclusive com diversas atividades de educação permanente para atualização dos profissionais.
“A SES-PE ressalta que foi pioneira na implementação de uma coordenação de saúde voltada para as especificidades da população LGBTQIA+, que também possui uma política editada em portaria no ano de 2015. Por meio da coordenação, estão sendo realizadas diversas capacitações com os profissionais da rede para garantir o respeito ao uso do nome social e o acolhimento necessário para o restabelecimento da condição de saúde dessa população. A SES destaca, ainda, que possui uma coordenação de Atenção à Saúde da População Negra, que também realiza diversas ações voltadas para as questões de saúde que acometem essa população.
“Por fim, a SES-PE orienta que condutas irregulares dos profissionais em exercício devem ser formalizadas por meio de denúncia na Ouvidoria da Saúde e/ou perante os conselhos de classe ou outros órgãos competentes, oportunizando uma apuração mediante a instauração de processos administrativos para adoção das medidas cabíveis.
Edição: Vanessa Gonzaga