Cria-se uma naturalização extremamente perversa sobre quem merece ou não ser amado
[Audiodescrição: Em fotografia aparecem em perfil alinhadas e de mãos dadas levantadas para o ar, pessoas com deficiência física usuárias de cadeira de rodas e pessoas sem deficiência, estas ajoelhadas. Elas estão sorrindo e olhando para frente. No chão aparece suas sombras. Ao fundo, na esquerda superior, prédios de cor marrom são iluminados pelo sol. À direita prédios também marrons e pessoas à frente observando o ato. Fim da descrição.]
Modificando um pouco a maneira como sempre escrevo, gostaria de me apresentar de outra forma: sou Viviane, irmã de uma mulher com deficiência. Me apresento assim porque é um ponto de orientação muito forte na minha vida ser irmã de uma pessoa com deficiência e sempre me tirou um pouco do eixo as concepções sobre cuidado, visto que existe em torno deste uma espécie de medo coletivo.
Acredito que esse sentimento, na verdade, desvela parte das estruturas morais mais profundas da sociedade, aquelas que ocultaram o cuidado como princípio ético de comunhão e emergiram a concepção deste como fardo, abdicação e esforços que ocasionam também lesões físicas, uma espécie de despejo de si para a devoção a outrem.
Em um documentário chamado Examined Life, Judith Butler e Sunaura Taylo caminham juntas e conversam sobre a necessidade de repensar o humano a partir de uma posição de interdependência. Elas questionam o fato de que existem necessidades básicas as quais são decididas como uma questão social e que o fato de pedirmos ajuda uns aos outros desafia o individualismo. Concluem dizendo que nós precisamos uns dos outros a fim de atender essas necessidades básicas e alegam sobre organizar um mundo social, político, que possua como base esse reconhecimento; o de que os vínculos de dependência são inevitáveis à vida social.
Eu diria que são os próprios vínculos de dependência que estruturam a vida humana e a garantia dessa relação de maneira ética deveria estar entre as principais demandas no que tange uma busca ampla por justiça social.
Isso porque esse individualismo nos impede de entender a interdependência com um espaço de amor. Existe uma máxima que diz que as relações de amor devem ser um espaço sem conflitos e independência, porém é justamente esse o caminho que nos desvirtua do fato de que a dependência faz parte de todas as nossas relações: tanto na infância, quanto nos envolvimentos construídos na fase adulta, na velhice e, por conseguinte, na vida das pessoas com deficiência. Todos precisamos de uma rede de ajuda e acolhimento.
Quando focamos nessas constatações sobre pessoas com deficiência, as quais encontram presença da dependência em várias de suas relações, tais visões individualistas levam ao entendimento de que esse espaço como condição se distancia do amor. Cria-se uma naturalização extremamente perversa sobre quem merece ou não ser amado, alimenta-se a ideia de extermínio, a qual subjuga que não se ama na dependência. No fim, isso é convertido em violência da maneira mais invisibilizada possível, basta apenas observar os números de maus tratos a essas pessoas, aos idosos e às crianças.
Ocorre que como nos disse em sua tese a filósofa, feminista e mãe de uma jovem com deficiência, Eva Kittay: “todos somos filhos de uma mãe” sustentando a ótica de que a dependência é algo inescapável à história de vida de todas as pessoas. A interdependência complexifica a dimensão coletiva e alarga as práticas de comunhão, mas é ignorada dando lugar a separação e a divinização do ganho individual.
Entender a interdependência como uma forma de emancipação por intermédio da comunhão, como um espaço de amor, é sabotar o raciocínio coach do “só depende de você”, porque na verdade, nunca depende “só de você” e o amor não floresce no isolamento.
Vale ressaltar que essa ótica é bem diferente da caridade que alimenta hierarquias, as quais estruturam as relações de poder e desigualdade. Se voltarmos ao meu espaço de experiência diante do fato de ter uma irmã com deficiência, por exemplo, observando a situação a partir de uma ótica menos arrogante, não fosse a interdependência na relação construída com ela eu não estaria escrevendo nessa coluna. O que subverte completamente a ótica assistencialista.
Estamos falando de comunhão e do medo coletivo que a sociedade tem do amor. No final das contas, todos precisamos da ajuda uns dos outros e esse reconhecimento deve ser encarado nas reivindicações por uma ética amorosa que possa nos inspirar e nos encorajar a fazer as mudanças necessárias e isso significa nos mover contra a alienação da separação, na tentativa de afastar esse medo e desespero sobre o coletivo que ameaça à vida.
Como diria Bell Hooks em seu livro ‘tudo sobre o amor”: “a prática de dar e receber mutualmente é um ritual diário quando conhecemos o amor verdadeiro [...] em meio a tal amor, nunca precisamos temer o abandono. Esse é o presente mais precioso que o amor verdadeiro nos oferece: a experiência de saber que sempre fazemos parte”.
Interdependência não é uma força baseada em hierarquias e pena, mas algo que funda e complexifica as relações e, que ao meu ver, pode ser considerado como uma potente e profunda arma para romper com o isolamento em busca da compreensão do real significado de caminhar lado a lado.
Dar é o modo de aprender a receber e esse espaço também deveria ser fundamentalmente um lugar de amor e luta.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga