Para eles, o corpo negro é o alvo a ser imobilizado, humilhado e abatido
Neste mês de novembro, veio ao conhecimento do público um vídeo que demonstra a abordagem da polícia de Minas Gerais contra uma mulher negra, na cidade de Itabira. Conforme se percebe das imagens, inicialmente os policiais estavam conversando com a mulher, que não apresentou qualquer comportamento violento para, de forma abrupta, tentar algemar a mulher que estava com seus dois filhos, um deles inclusive ainda em seu colo. Mesmo com a criança em seu colo, a mulher foi imobilizada e jogada no chão, tendo um dos policiais pressionado o joelho contra o pescoço da mulher, em uma cena que lembra o assassinato de George Floyd, trágico evento que culminou em uma série de protestos antirracistas em solo estadunidense.
No momento da abordagem, a criança mais velha desespera-se e chega a empurrar os policiais, com a intenção de livrar sua mãe da agressão. Uma outra pessoa, ao perceber que a mulher havia sido derrubada com o filho no colo, conseguiu pegar a criança dos seus braços, evitando que a criança viesse a ser ainda mais agredida pelos policiais.
De acordo com a PM de Minas Gerais, a abordagem foi necessária porque a mulher estaria portando uma arma de fogo. Ressalta-se, contudo, que em nenhum momento qualquer artefato de fogo é visto na filmagem. Um dos policiais responsáveis pela ação chega a pegar a bolsa da mulher, mas sai do quadro da filmagem, sem que possa ser estabelecido se havia realmente alguma arma de fogo dentro da bolsa.
Fato é que, ao que se ver da imagem, a mulher não apresentava qualquer resistência à abordagem policial. Exceto pelo temor que certamente sentia, principalmente porque estava com seus dois filhos, um deles inclusive ainda uma criança de colo, não se percebe na filmagem qualquer comportamento seu capaz de justificar a utilização de algemas por parte da polícia. Após isso, a Polícia Civil, responsável por receber e investigar os flagrantes, revelou que a mulher conduzida pela PM foi liberada, sem que tenha sido aberta em seu desfavor qualquer investigação a respeito de porte de arma de fogo.
De acordo com a lei brasileira, o uso de algemas só é justificável quando a pessoa presa resiste ou represente perigo para si ou para terceiros. Justamente por conta disso, a Constituição Federal garante, no inciso quarenta e nova do seu artigo quinto, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Também por conta disso, o Código de Processo Penal prevê que o executor da prisão em flagrante poderá usar os meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência da pessoa presa.
É importante ressaltar que, pelo vídeo que circula na internet, a mulher apenas resiste à abordagem quando os policiais tentam algemá-la enquanto está com seu filho no colo. Há, assim, uma inversão evidente entre ação e reação. O precário treinamento policial, aliado ao racismo estruturante da Polícia Militar brasileira e ao seu caráter ditatorial e autoritário, impede que os dois policiais que realizam a abordagem exerçam suas atividades de segurança com o necessário respeito à integridade física e moral não só da mulher, mas também dos seus dois filhos menores de idade.
No país em que se criminaliza o aborto e no qual se realiza uma defesa ideológica sobre o papel da mulher apenas como figura materna, a ação policial parece contradizer supostos princípios de defesa da maternidade e da família. Tal contradição, no entanto, é apenas aparente. A Polícia Militar, bem como praticamente – se não – todo o aparato de segurança pública do Estado brasileiro é fundamentado no controle de corpos racializados. Em uma estrutura policial entrelaçada desde sua origem pelo racismo estrutural, os policiais só viram a cor da mulher e ignoraram o filho em seus braços, pois, para eles, o corpo negro é o alvo a ser imobilizado, humilhado e abatido. Nas palavras de Ana Flauzina, a mulher vítima da abordagem policial trata-se de mais um “corpo negro caído ao chão”, com seus direitos mais básicos negados, inclusive o direito de levar, no colo, seu próprio filho.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga