Ser anticapacitista inevitavelmente é lutar contra a corponormatividade
[Audiodescrição: Em fotografia à esquerda está estacionado um ônibus de linha pública em cores azul claro e preto. Centralizado ao veículo, está um cartaz em fundo preto, escrito com letras maiúsculas branca a palavra "especial". À direita, entrando no veículo sem acessibilidade, está um homem branco usando roupa preta e com deficiência, o qual utiliza uma muleta. Ele olha para o chão, enquanto uma mulher idosa sobre no ônibus a sua frente. Ao fundo, aparece uma rua com casas coloridas. Fim da descrição.]
Ao fazer a leitura do texto recentemente publicado na Revista de Sociologia Contemporânea escrito por Fagner Carniel e Anahí Guedes de Mello, me chamou atenção o seguinte fragmento: “A obsessão do pensamento moderno pela normalidade colocou ênfase no corpo como meio de produção de vida e na produtividade como o caminho privilegiado para a cidadania”.
Ao contrário do que muitos pensam, a ideia de incapacidade não apenas tem ligação aos corpos de pessoas com deficiência, mas de um modo geral, a uma complexa teia de emaranhados de opressão e repressão social. Utilizando a expressão dos autores supracitados, “os corpos deficientizados” não são apenas os que possuem lesões, mas também aqueles que historicamente já experimentaram o status social do problema a ser corrigido.
Essa organização se reafirma em uma naturalizada concepção biologizante que define os níveis de deficiência. Estes são cuidadosamente adequados a um "tipo genérico", o qual se opõe a variações físicas de pessoas consideradas como diferentes, desviantes, inferiores e insuficientes, para que assim, seja justificada a consequência do status de improdutivos, perigosos, feios, defeituosos e sujos.
Esses paralelos caminham de maneira harmonizada mantendo e reforçando as taxonomias de valor corporal que fundamentam a política, a sociedade e arranjos econômicos, os quais, sem tais ditames, entrariam em colapso.
O que procuro apontar nesse texto é que são necessárias antíteses para demarcar a fronteira do genérico. Por isso, não estou falando apenas do corpo que carrega uma lesão, a qual sua inferioridade é sustentada tendo como base a sua forma, mas de arranjos que se configuram como o oposto do progresso moral e que também possuem raça e gênero. Assim, para a exaltação do corpo masculino e branco, o despojo e violência do corpo feminino e negro.
Fazendo alguns resgates sobre esse contexto, ocorreu-me uma das passagens do livro de Bell Hooks “e eu não sou uma mulher?” quando traz reflexões acerca da desvalorização constante das mulheres negras reforçadas por uma série de mitos construídos ainda no período de escravização.
A autora lembra que “um desses mitos foi a noção de que todas elas eram criaturas sub-humanas, masculinizadas. Escravizadas negras haviam mostrado que eram capazes de realizar os chamados trabalho de homem que elas eram capazes de aguentar sofrimento, dor e privação, mas que também conseguiam realizar as chamadas tarefas “de mulher”, as quais incluíam cuidar da casa, cozinhar e educar crianças. A habilidade de lidar bem com os papéis definidos por conceitos sexistas como de “homens” ameaçavam os mitos patriarcais sobre a natureza da diferença e inferioridade patológica nata da mulher”.
Questões como a supracitada, ainda assolam a coletividade em diversas formas, clinicalizando e patologizando gênero, raça, sexualidade e deficiência, a fim de abastecer a repressão de diagnosticar identidade e construções histórico-culturais como desviantes.
Explicando de maneira simples: sem o patológico não existe o normal e é necessária a completude de alguns corpos para a deficiência de outros, tais como o das pessoas negras, das mulheres, população LGBTQIA+ e o das pessoas com deficiência.
Por isso, ainda como trouxeram Fagner Carniel e Anahí Guedes de Mello “as relações sociais de poder podem ser facilmente transferidas para uma análise da deficiência” a partir das configurações corporais, sócio e culturais às quais chamamos de defeituosas. Em outras palavras, são os conceitos atrelados à deficiência que unem grupos altamente marcados pela ótica da normalidade, visto que a semelhança desse enlace é a de ser considerado anormal.
Portanto, a luta por desmontar esses pressupostos deveria nos colocar do mesmo lado da trincheira. Ser anticapacitista inevitavelmente é lutar contra a corponormatividade, a qual torna um signo social retirar a dignidade/vida dos aleijados da memória coletiva, mas são esses que através das suas formas, cores e lutas confrontam e desmontam fatalmente uma norma com defeito.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga