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Em nome da honra e glória, mais um corpo com deficiência segregado

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Na data que marca o dia internacional da pessoa com deficiência, Governo Federal realizou evento de premiação do programa “Pátria Voluntária” - Alan Santos/PR
A acessibilidade, no lugar de ser um espaço de direitos, passa a ser obra de caridade.

[Audiodescrição: Em fotografia estão enfileiradas autoridades do governo Bolsonaro. Centralizados estão o presidente Bolsonaro e a primeira-dama Michelle Bolsonaro com a mão direita no peito respectivamente. As demais autoridades à direita de Michelle também colocam a mão no peito. À frente da fileira, está um púlpito de madeira com o brasão do Governo Federal em dourado. Ao fundo uma parede azul claro com os escritos em branco e caixa alta: Pátria Voluntária. Somos solidários. Somos voluntários. Fim da descrição.]

No dia 03 de dezembro de 2021 – data que marca o dia internacional da pessoa com deficiência - ocorreu de forma online a premiação do Governo Federal voltada aos trabalhos de promoção de acessibilidade a partir do programa “Pátria Voluntária”. Dessa maneira, ornamentadas pelo grito de ordem “todo mundo cuida de todo mundo”, as lonas que performam o “circo” do evento se armam e eis que começa o show. 

Entre pessoas com deficiência ocupando os espaços da sala, estavam também os profissionais da acessibilidade. Centralizado na tela de transmissão, o presidente Bolsonaro, o qual em um ato de falsa condescendência, passa a palavra para a primeira-dama, Michelle Bolsonaro que, por sua vez, discursa conjuntamente com a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; Damares Alves. 

Entre os fragmentos do dito pela Ministra – a qual se audiodescreve anunciando sua roupa, mas ocultando suas características físicas – é defendido o argumento de que não precisamos de uma lei para impor à nação que esta precisa de acessibilidade, porque isso a torna longe do ideal. Conclui dizendo que podemos fazer tudo isso sem imposição, penalidade ou multa. Provavelmente essa conclusão não se deu pelo número de calçadas ou obras, as quais a ministra encontrou acessibilidade física. 

Ao fim da exposição da excelentíssima Damares, progressivamente se instala uma música ao fundo. O som do violão se mistura aos comentários escritos no chat que entre aplausos e “amém”, em clima de santificação, são quebrados algumas vezes pela raiva e repreensão dirigida a quem discorda do discurso, através dos ditos:  “Cuidado com a língua, Deus vê tudo” ou ainda “vai depilar o sovaco esquerdista”. 

Diante desse clima é anunciada a próxima atração. Eis que em um evento oficial, o qual versa sobre Direitos Sociais e Humanos, aparece o pastor, para abençoar o espaço, fazer exposição de algumas palavras e cantar a sua música. Ao entrar em cena e pedir honra e glória ao presidente ele expõe o seguinte refrão: “prefiro ser, senhor, o foco do seu olhar”.  

No chat, seguem as expressões emocionadas: “ninguém é deficiente, somos todos iguais”. “Glória a Deus”. “Deus é justo juiz”. No ápice de sua apresentação, cheio de emoção e palavras de gratidão, o pastor finaliza: “a todos os deficientes... Deus acredita em vocês”!

Após um grande amém coletivo, a arena do circo se fecha, as luzes se apagam e é justo no escuro que podemos olhar com atenção para o que está por trás dos holofotes, cantos e choros; o perigoso e cruel discurso da caridade. Aquele mesmo que há anos descaracteriza qualquer possibilidade das pessoas com deficiência serem vistas como gente, sujeitos de direitos e princípios éticos e políticos. Aquele que levanta sorrateiramente uma ideia de que pessoas com deficiência precisam de autorização para acessar a sociedade.

Desta feita, é a partir da glorificação do “Pátria Voluntária”, o qual nas palavras da Ministra “tem sido essa ponte, essa benção de Deus” que se fortifica profundamente uma campanha pela (in)existência de pessoas com corpos diversos, cada vez mais maquiada pela imposição evidente (ou não) de que acessibilidade, no lugar de ser um espaço de direitos, passa a ser obra de caridade.

Mascarada pelo assistencialismo, as devastadoras consequências sociais da rejeição pela vida da pessoa com deficiência, são configuradas em uma ambiguidade entre o discurso forjado de proteção, o qual, na verdade é um castigo que tem como consequência a segregação, ditada em hierarquias de valor sobre quem é humano e quem não. 

Dito de uma maneira mais simples: segregar é exercer a caridade, pois em tempo que os corpos destoantes ao discurso do ideal não são bem-vindos, por isso, segregados em instituições especializadas, os definidores da normalidade os dão teto, comida e o status de especial, quase que como um meio de salvar as almas cristãs da destoante existência da deficiência.

Marcados, portanto, pela tonalidade de tragédia pessoal de suas respectivas existências, as pessoas com deficiência continuam sendo forjadas e alijadas dos diversos espaços sociais e, diante dos binômios, aceitação – rejeição – cuidado – isolamento, continuam tendo seus corpos marcados pela tonalidade divina e indecorosa que assume esse governo ao se ditar defensor das pautas de acessibilidade. 

No final das contas, ocorre que, enquanto todos dizem amém, mais um espaço de encarceramento e apagamento é glorificado em nome da justiça divina.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga