Há dois anos, no início de 2020, o Brasil já vivia um quadro de crescimento do desemprego, da pobreza e o aumento no número de pessoas em situação de rua. Sintomas da “desaceleração” da economia – que já não estava bem, mas que com Bolsonaro piorou. E o novo governo não criou políticas para atender a população mais pobre. Como tudo sempre pode piorar, chegou a pandemia da covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2, o “novo coronavírus”.
Enquanto o Governo Federal criava conflitos com a Justiça, governos e prefeituras apontavam para direções distintas e grandes empresários afirmavam que “tudo bem se muita gente morrer” (desde que seus lucros não reduzissem), enquanto o Brasil batia cabeça numa confusão de informações, um conjunto de organizações da sociedade se uniram para garantir a sobrevivência da população mais pobre, exposta ao vírus e à fome.
Em Pernambuco os movimentos se uniram para formar a campanha “Mãos Solidárias”, que ao longo de 2020 costurou e distribuiu máscaras, cestas básicas, marmitas com refeições, ajudou a criar hortas comunitárias para a produção de alimentos e formou agentes populares de saúde para educar e cuidar a população nas comunidades a se prevenirem contra o coronavírus. Até bibliotecas populares foram inauguradas, porque a mente também precisa de alimento e saúde.
A campanha continuou em 2021, agregando outros parceiros, criando novas ações e se expandindo pelo estado de Pernambuco e além. O MST, o Armazém do Campo, sindicatos ligados à CUT e a Fetape, ONGs, a ASA, movimentos de juventude e luta por moradia, organizações como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), universidades públicas e privadas, igrejas protestantes e a Igreja Católica (pela Arquidiocese de Olinda e Recife) são parte dos parceiros. Muitos indivíduos também se somaram, seja emprestando seu tempo como voluntário ou fazendo doações em dinheiro.
Um dos coordenadores da campanha Mãos Solidárias, Paulo Mansan, conta que o mergulho nos bolsões de pobreza do Recife lhe permitiu “comprovar, na prática” que a cidade é a capital mais desigual do país (posto que ocupa há 25 anos, de acordo com a Pnad/IBGE). “Todo dia vemos novas pessoas em situação de rua e as palafitas se proliferam”, lamenta. Ele conta que em 2020 o whatsapp da campanha recebia muitas mensagens de pessoas querendo doar, “mas agora são muito mais mensagens de pessoas passando fome, pedindo ajuda”.
A campanha recebeu doações de agricultores – ligados ao MST e outros movimentos – nada menos que 950 toneladas de alimentos, que nesses quase dois anos foram transformadas em 750 mil marmitas distribuídas gratuita e diariamente para a população no centro da cidade e noutros bairros. A “Mãos” ainda prepara 5 mil cestas básicas para serem distribuídas na Região Metropolitana do Recife. Também funcionam ao menos cinco hortas solidárias no Recife, Olinda, Camaragibe, Igarassu e Petrolina. A campanha criou e agregou mais de 20 bancos populares de alimentos, onde a comunidade pode pegar quilos dos itens que precisa.
Outra ação visando reduzir a fome são as Cozinhas Populares Solidárias Dom Hélder Câmara. A campanha ajuda a estruturar o espaço físico e fornece alimentos regularmente, de modo que aquela comunidade se organiza para gerir a cozinha de modo que todos possam se alimentar. Equipamentos do tipo foram construídos em palafitas e favelas da região metropolitana do Recife. Com parceria da Arquidiocese de Olinda e Recife, Central Única dos Trabalhadores (CUT), Federação Única dos Petroleiros (FUP) e outras organizações, o objetivo é chegar a 10 cozinhas até março.
Paulo Mansan afirma que essas ações são fundamentais, mas não resolvem o problema da fome. “Elas ajudam a mitigar, mas é dever da Prefeitura, Governo do Estado e Governo Federal criarem políticas públicas que resolvam isso”. Há poucos sinais de que o cenário vá mudar nos próximos meses. “O que temos que fazer é avançar com as cozinhas, lutar por restaurantes populares com refeições a R$1,00, estimular outras ações da sociedade e principalmente apoiar a produção de alimentos saudáveis”, avalia ele.
Nos últimos meses o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) tomou a decisão de, em todo acampamento e assentamento que possuem, separar um ou dois hectares para o plantio de itens exclusivamente para a solidariedade. São os chamados “Roçados Solidários”. Só em Pernambuco há mais de 15 roçados do tipo. E todos os fins de semana as pessoas interessadas podem ir plantar e colher os alimentos que serão servidos em marmitas.
E os agentes populares, inicialmente voltados para a atuação sanitária de prevenção, se tornaram peça fundamental na articulação das demais ações. Com a ajuda de especialistas da Fiocruz, universidades, igrejas e sindicatos, foram mais de 1.500 agentes formados no Mãos Solidárias em cerca de 20 municípios só em Pernambuco. Além dos cuidados com a saúde, eles agora ajudam no funcionamento das hortas, marmitas, cozinhas e recebem outras demandas das comunidades em que estão inseridos. A estratégia foi “exportada” para outros estados brasileiros.
Uma das voluntárias é Maria Eduarda Vasconcelos. Natural de Barra de São Miguel, sertão da Paraíba, a jovem de 22 anos é militante católica na Pastoral da Juventude Rural (PJR). No início da pandemia, enquanto se protegia em casa, “vi que as demandas do mundo estavam crescendo, com a crise”, diz ela. Em outubro, após uma convocatória da Mãos direcionada à PJR, Eduarda decidiu se somar. “No início, ainda sem vacina, passei quatro meses sem ir para casa. Mas agora, com todo mundo vacinado, vou com mais frequência”, conta.
A experiência de atuação de Eduarda era principalmente rural, mas agora mergulha de cabeça no trabalho urbano. “Na comunidade rural é muito forte isso de todo mundo se ajudar. E achei que não existia na cidade grande. Mas vi que nas periferias isso é muito forte”, avalia. Ela está num dos três grupos da Brigada Popular Solidária e atua na região norte e central do Recife e parte de Olinda.
Quando chegou, ela e outros voluntários participaram de atividades de estudo, formação. “Tudo o que os profissionais nos passaram, nós agora repassamos para as pessoas”, resume ela. É o que chama de “solidariedade ativa”. “Não é só dar, mas contribuir, construir junto com as comunidades”, diz. Maria Eduarda considera a experiência positiva. “Ninguém vai sair bem dessa pandemia. Mas posso dizer que nesse trabalho solidário eu cresci muito enquanto pessoa”.
Os voluntários, que costumam ser mais jovens, viram se somar à campanha um outro perfil: as famílias beneficiadas pelas ações passaram a se envolver nas ações como voluntários. É o caso de Ivanise, moradora de uma comunidade de palafitas no bairro do Pina. “Foi muito bom fazermos amizade com o pessoal dos movimentos. Não está mais faltando comida para a comunidade. Agradeço muito a todos”, diz ela, que agora é coordenadora voluntária da cozinha popular solidária construída nas palafitas.
No total foram mais de 30 mil famílias diretamente alcançadas pelas ações da campanha Mãos Solidárias no estado, somando mais de 100 mil pessoas beneficiadas – sem contar as 750 mil de marmitas distribuídas, com média superior a mil por dia. A campanha não se limitou à região metropolitana e alcançou mais de 50 municípios pernambucanos, do litoral ao Sertão.
A campanha precisa de doações financeiras (através da chave Pix 094.232.700.001-80) e de alimentos, além de voluntários dispostos a dedicar tempo para ajudar outras pessoas. Outras informações podem ser obtidas pelo telefone/whatsapp (81) 98182-8197 e nas páginas do Mãos Solidárias no Instagram (@maos.solidarias.pe) ou no site da campanha (www.campanhamaossolidarias.org).
Edição: Vanessa Gonzaga e Rani de Mendonça