Pernambuco

DENÚNCIA

Mãe denuncia exclusão de filho com síndrome de Down do ensino presencial em escola no Recife

O caso aconteceu na Escola Municipal Julio Vicente Alves de Araújo, no Morro da Conceição

Brasil de Fato | Recife (PE) |
De acordo com Kassya, não é a primeira vez que Miguel começa a estudar na escola que posteriormente revela não estar preparado para acolhê-lo - Arquivo Pessoal

Passados quatro dias desde que seu filho retornou às aulas presenciais no Recife, a maquiadora Kassya de Souza, 30 anos, foi chamada para buscá-lo na escola. A mãe relatou que a professora teria enviado uma mensagem de voz avisando que o menino estava dormindo em sala. Quando chegou ao local, a docente teria perguntado se Kassya não achava melhor que o garoto voltasse a estudar em casa, alegando que ele estava tirando a máscara e lambendo a banca, e que ela não tinha condições de prestar atenção nele a todo instante. A diretora teria complementado a fala dizendo que a criança “poderia sair da sala, cair da escada e seria culpa da escola". Miguel, de 8 anos, aluno do 2º ano do ensino fundamental I, tem síndrome de Down.

O caso aconteceu no último dia 24 de novembro, na Escola Municipal Julio Vicente Alves de Araújo, no Morro da Conceição, Zona Norte do Recife, bairro onde a família reside. Na visão de Kassya, trata-se de uma questão de falta de inclusão perpetrada pela professora e corroborada pela diretora. Para ela, ao aceitar um aluno que tenha deficiência, a instituição deveria ter condições e instrução para recebê-la. “A escola só diz que pega criança com deficiência por dizer, porque não tem a estabilidade para isso”, criticou.

Depois do ocorrido, ela recorda ter deixado a escola chorando ao lado de Miguel. “Eu fiquei muito abalada, tive que parar na casa do meu pai para beber um copo d'água”, contou à reportagem. “Achei bem injusto, porque eu via as crianças todas dentro da sala e Miguel não, por conta da condição dele”, lamentou.

No momento da conversa, a professora teria lembrado que Kassya não estava devolvendo as tarefas de casa realizadas por Miguel. A mãe teria respondido que o garoto não tinha condições de fazer as atividades passadas no grupo da sala porque, conforme haviam conversado anteriormente, eram muito avançadas para ele. “Ela ficava mandando foto dos livros, mas Miguel não sabe nem fazer a letrinha ‘a’.”

A solução apresentada pelas educadoras foi que Kassya fosse à escola toda segunda-feira buscar e retornar tarefas de casa específicas preparadas para o menino. E é isso que ela tem feito desde então. “Me senti impotente. Coagida. Ou tinha que aceitar ou aceitar”, disse. A maquiadora fez denúncia nas redes sociais, mas até agora não teve retorno sobre nenhuma providência sendo tomada a respeito do caso.

Neste período de ensino remoto, o desenvolvimento de Miguel foi afetado significativamente. “Ele regrediu tudo que tinha aprendido. Se perguntar uma cor a Miguel, ele não sabe dizer”, contou.

Não é a primeira vez que a criança começa a estudar na escola que posteriormente revela não estar preparado para acolhê-la. A mãe relatou que ele saiu da primeira instituição que frequentou, um colégio particular, porque o estabelecimento enviava reclamações sobre seu comportamento diariamente. E As situações de discriminação não são vivenciadas exclusivamente no espaço escolar. Segundo Kassya, o preconceito se estende para outras esferas da vida, inclusive no ciclo familiar. “Certas coisas [comportamentos], que a gente sabe que é uma regressão dele, as pessoas acham que é malcriação. Não entendo isso. isso é muito frustrante, ao mesmo tempo que é muito triste porque exclui ele de verdade.”

CONDUTA DA ESCOLA É ILEGAL, AFIRMAM ESPECIALISTAS

Especialistas em direito da criança e do adolescente condenaram a conduta discriminatória da Escola Municipal Julio Vicente Alves de Araújo. Na análise preliminar de Antônio Carlos Sestaro, presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, a instituição fez interpretações capacitistas ao “colocar em cima de Miguel situações que são passíveis de ocorrer com qualquer criança”.

“Não é possivel mais no século XXI a gente aceitar a exclusão de um aluno da sala de aula por essas colocações feitas no relato - ou dormindo, ou porque pode cair, ou porque está sem máscara”, defendeu. "Existe a Teoria do Risco do Negócio. Todo aquele que fornece um serviço a alguém tem seus riscos e suas responsabilidades. Então a escola tem a responsabilidade objetiva perante todos os alunos dentro de suas dependências. Ela não pode se omitir disso." A Federação, por meio de Sestaro, informou que seu Comitê de Educação se coloca à disposição para orientar pedagogicamente a escola.

A jornalista Cláudia Werneck, fundadora da ONG Escola de Gente e porta-voz da Rede Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência, lembrou que as crianças com deficiência possuem os mesmos direitos que as demais. “O que elas precisam é que suas necessidades específicas sejam completamente atendidas. É um direito inadiável, emergencial, garantido pela Constituição. A gente havia avançado bastante, questões como essa começaram a se tornar mais raras no país, e agora infelizmente voltamos a esse retrocesso, de uma rede pública de ensino escolher e segregar crianças”, criticou.

Ela contou que tem havido por parte do Governo Federal tentativas de retrocesso nas políticas de educação especial com viés inclusivo. Essas investidas, falou, têm sido bloqueadas pela sociedade civil e pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF), que tem garantido que a legislação não ande para trás.

Atualmente, há um corpo de leis que garantem a inclusão de pessoas com deficiência e que, inclusive, tornam ilegal a conduta da escola de Miguel, conforme explicou a pedagoga Ruth Lima, gerente de Programas da ONG Visão Mundial. “A Lei 3.146 de 6 de julho de 2015, chamada de Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, no seu artigo 4º, diz que toda pessoa com deficiência deverá ter igualdade de oportunidade com as demais pessoas, e não deverá sofrer nenhuma espécie de discriminação”, detalhou.

O texto citado define discriminação como “toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou exercício dos direitos das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas”.

“Ou seja, isso quer dizer que as escolas precisam se adaptar e se ajustar às necessidades das pessoas com deficiência, e não o inverso, como se caracterizou no caso denunciado”, resumiu a pedagoga.

A conduta ainda está em desacordo com outras orientações, como do Estatuto da Criança e do Alescente (ECA), que prevê o direito à educação, e das Diretrizes Nacionais para educação de alunos que apresentem necessidades educacionais especiais, que afirmam que o atendimento escolar deve assegurar os serviços de educação especial sempre que se evidencie a necessidade, e que cabe aos sistemas de ensino organizar-se para tal.

“Significa que essa inclusão não deve se limitar apenas à colocação da criança com deficiência na sala de aula do ensino regular. Esse aluno deve ser tratado de forma ampla, verificando e suprindo todas suas necessidades, garantindo sua efetiva educação, que envolve toda a escola, inclusive professores, funcionários, demais alunos, materiais didáticos, apoios e recursos educativos”, citou a pedagoga.

O QUE DIZ A PREFEITURA

A Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Educação do Recife, foi procurada para se posicionar em relação ao caso. Até o fechamento da matéria, não houve resposta. O espaço está aberto.

Edição: Rani de Mendonça