Inicio esta reflexão reafirmando meu compromisso em defesa da cultura popular e contra qualquer tentativa de criminalização ou censura a qualquer grupo ou comunidade. Também pontuo que este complexo assunto deve ser considerado em todas as suas singularidades, pesos e medidas, para que não haja equivalência de desiguais, assim como a genuína expressão do povo diante das festas privadas.
O carnaval de Pernambuco é responsável por injetar quase 2 bilhões de reais na economia do nosso estado. Sendo um dos pilares do “ser pernambucano”, a manifestação de quatro dias, requer amor, paixão e devoção de vários artistas e trabalhadores/as durante o ano inteiro para ser realizada. No Recife e em Olinda, diversas agremiações, seguem como instituições vivas nas suas comunidades.
Desde o início da pandemia, as organizações promovem diversas ações solidárias, culturais e recreativas, como entrega de alimentos, materiais de higiene e limpeza, aulas de frevo e cursos para a população. Em grande parte, as agremiações responsáveis pela construção da identidade do nosso carnaval seguiram e continuam a seguir as recomendações sanitárias. A vasta maioria, é preciso repetir, se engajou na promoção de campanhas de distribuição de alimentos neste período pandêmico, no intuito de socorrer as suas próprias comunidades e auxiliar a cadeia produtiva da cultura popular em situação de vulnerabilidade.
Por isso, é importante diferenciar esses clubes, troças e blocos das grandes iniciativas privadas de entretenimento, que não possuem vínculo comunitário e identitário, nem compromisso social, visando exclusivamente o lucro dos seus produtores e associados.
Vale lembrar que esta luta pela legítima diferenciação não surgiu hoje. A cultura popular tradicional persiste em existir mesmo diante do aumento da camarotização que desconfigura a nossa festa. O Bairro do Recife e o Sítio Histórico de Olinda assistem, ano após ano, ao aumento dessas festas privadas em que só uma pequena parcela da sociedade tem acesso. A camarotização do carnaval cria uma dicotomia de contornos socioeconomicos profundos.
De um lado, a rua, o espaço público e gratuito, acessível ao povo, que segue criminalizado, rechaçado e censurado. De outro, um espaço para uma pequena elite que, hoje, aglomera sem máscara, conforme bastante divulgado nas redes sociais, porém que sofre pouca ou nenhuma responsabilização. Permitir que em um momento pandêmico um modelo de festa exista, e o outro não, pode aprofundar ainda mais as já existentes desigualdades entre si e, por fim, que o poderio econômico se sobreponha às espontâneas e históricas expressões populares.
Do mesmo modo, como é que chegamos em fevereiro e não existe uma posição oficial e protocolo sanitário do governo do Estado e dos governos municipais? Estamos no segundo ano da pandemia e já se tinha forte indicativo, corretamente, que não seria possível a realização do carnaval no formato tradicional. Também vale lembrar que foi a cultura popular, com o Homem da Meia-Noite, o primeiro setor a dizer que nestas condições sanitárias não realizaria seu tradicional desfile nas ruas.
Porém, a falta de uma discussão propositiva, que se aproxima da total negligência com a cultura popular, não possibilitou a realização de um debate que visasse a construção de uma alternativa de ação que valorizasse nossos folguedos e manifestações populares. Existe uma verdadeira necessidade de restrições sanitárias mais eficazes, porém o que ocorre atualmente, na prática, são eventos privados que seguem seu calendário de festas e de lucro enquanto outros artistas populares e trabalhadores/as continuam à margem deste debate.
Ademais, é preciso alertar que o auxílio de 6 milhões de reais que o Governo do Estado anunciou tem as mesmas carências do pequeno auxílio do ano passado, por não contemplar outros atores e atrizes da cadeia produtiva que a festa momesca gera. São costureiras, trabalhadores informais e catadores de recicláveis que seguem sem o mínimo alento financeiro, tornando assim o auxílio incompleto por não atingir o que devia ser sua principal finalidade: atenuar as extremas dificuldades da população que mais precisa nesta crise econômica.
Portanto, é importante que não justifiquemos qualquer aglomeração, mas que os pesos e as medidas sejam proporcionais e que existam, de fato, ações efetivas do poder público que combatam a propagação desse vírus letal. De maneira a garantir a sobrevivência do povo pobre e trabalhador que encontra no carnaval um espaço de confraternização, mas também de oportunidade para trabalhar e sustentar suas famílias.
Por isso, é imprescindível apontar o verdadeiro problema que nos trouxe para esta triste realidade: o discurso negacionista de Bolsonaro que desestimula a população a se vacinar e se proteger. O negacionismo facilita a criação de novas variantes que prolongam a pandemia e ceifam ainda mais vidas. As expressões populares não devem ser exclusivamente responsabilizadas de maneira desproporcional por um problema que é nacional e político. A cultura seguirá viva, forte e empenhada na transformação das vidas das pessoas.
*Eugênia é bacharela em Direito pela UNICAP, Presidenta do PSOL Olinda e pré-candidata ao Senado Federal
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga