Pernambuco

Coluna

“Quebre o resto do meu filho que você me paga!”

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Ouça o áudio:

Pesquisa aponta que população negra tem 10% a mais de chance de adquirir deficiências ao longo da vida - Marcelo Camargo/Agência Brasil
As desigualdades estruturais são diretamente fundantes no que tange à deficiência

[Audiodescrição: Em fotografia centralizada aparece uma mulher negra, em pé, de costas. Ela esta conduzindo a cadeira de rodas de uma criança com a mão direita e segurando uma sacola com a esquerda. Nos seu ombro direito segura uma outra bolsa, cor marrom. Usa calça jeans e blusa branca. À direta, aparece uma criança de costa que usa uma cadeira de rodas. Ao fundo, em turvo, outras mulheres estão conduzindo outras cadeiras de rodas e pessoas passam olhado ao lado. Fim da descrição.]

Este é o último artigo da série sobre abandono, mas com certeza não será o último texto atravessado por esse tema. Há algum tempo, tenho conversado com cuidadoras de pessoas com deficiência da cidade de  Garanhuns, no intuito de construirmos redes de apoio na cidade entre essas mulheres.

Em uma dessas conversas conheci Maria (nome fictício). Ela tem 32 anos, é agrestina da região de Pernambuco, negra, favelada e como ela mesma se definiu: pai e mãe de três crianças. Um deles é João (nome fictício), que possui deficiência física, adquirida após passar oito meses esperando atendimento médico depois de ser empurrado na escola, ocasião em que fraturou a bacia. Devido às negligências de vários setores ele desenvolveu uma doença rara no fêmur, passando a ter a deficiência como condição. 

Existe um imaginário social de que a deficiência só existe a partir de uma situação congênita, quando as pessoas que nascem com deficiência. No entanto, os fatores estruturais de desigualdade, raça e gênero são absolutamente definidores não apenas no que tange àquelas mulheres que sofrem violência de gênero durante a gestação, ou obstétrica, como ainda aqueles que possuem menor acesso aos serviços da saúde sejam eles hospitalares, psicológicos ou sanitários. 

Maria é daquelas mães que “abdicou de tudo” para prestar assistência ao filho. Longe de ser uma história de superação, Maria e João vivem o triste, doloroso e cansativo dia a dia de milhões de cuidadoras e pessoas com deficiência gerado pelo modo de produção capitalista, em que pese a ressalva, este sim, incapacitante. 

Enquanto os assistencialistas batem palmas dando audiência às ações caridosas dos programas de auditório, Maria, sentada à minha frente, de trago em trago no seu cigarro, retrata a verdadeira cara da desigualdade. Ela diz: “Eu tinha um sonho antes. Depois disso tenho mais não. Tem mais sonho não. Acabou! [...] Eu corro, eu vou atrás de carro, eu ando com esse menino nas costas. Eu boto ele nas costas! Às vezes de noite eu tô com um caroço, por causa do ferro que fica batendo nas minhas costas, ainda tá o caroço aqui (me mostra), que é do ferro (referindo-se a estrutura de sustentação do quadril usada por João). Aí eu penduro ele e vou-me embora. Eu viajo, não perco consulta dele, não perco nada”.

Nesse momento, lembrei muito do que li no livro de Carolina Maria de Jesus, “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, quando ela falava que odiava os políticos e os patrões, porque o seu sonho era escrever e o pobre não podia ter um ideal nobre, ninguém estava habituado a esse tipo de literatura. Ela disse: “Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade”. 

Trouxe a lembrança desse livro, porque Maria trabalhava com reciclagem e me contou que antes de começar a carregar o seu filho nas costas tinha o sonho de estudar. Ao mesmo tempo que seu olhar baixa quando diz isso, ela retoma a postura e colocando ar dentro dos seus pulmões, erguendo o rosto afirma que hoje sua única vontade é que João sonhe alto, bem alto, porque ela ficaria com a realidade. 

Essa realidade que “ficou com Maria” evidencia que as categorias de raça, classe, gênero, sexualidade, capacidade, etnia e faixa etária – entre outras – estão inter-relacionadas e moldam-se mutuamente, por isso, considerar que a discussão acerca da deficiência não apenas é atravessada pelas questões estruturais, mas sim, determinadas por estas é uma maneira de compreender a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas. 

Os índices do Retratos da deficiência no Brasil nos mostram que encabeçando a lista de estados onde aparecem maior número de pessoas com deficiência estão: Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará. Paradoxalmente todos do Nordeste, sendo do quantitativo total 13,78% brancos, 17,47% negros, 17,06% indígenas e 54% mulheres. Considerando ainda, segundo a mesma fonte, que a população negra tem 10% a mais de chance de adquirir deficiências ao longo da vida. 

Assim, podemos afirmar que as desigualdades estruturais são diretamente fundantes no que tange à deficiência, porque são estas que marcam os públicos mais subalternizados, explorados e incapacitados, a partir das permissivas exceções aos Direitos Humanos e Fundamentais (para quem e de quem?) que dão origem aos corpos lesados e machucados, não pela deficiência, mas sim, pela marca do abandono.

Durante a conversa com Maria também lembrei do texto de Daniela Arbex (Holocausto Brasileiro) ao trazer a história dos meninos de Oliveira – jogados no hospital de Oliveira por terem deficiência – ao serem visitados por uma jornalista que chegara à Barbacena. Esta, impressionada com o tamanho da violência que presenciava, perguntou o que aconteceria com as crianças com deficiência quando elas ficassem adultas. A resposta veio dura como um golpe de navalha: morrem, ué!

Não mudou muito dos meninos de Oliveira para cá, nem da escrita de Carolina de Jesus. Gente igual a João, precisa de uma Maria e gente igual à Maria, precisa de outras mulheres: mães, avós, irmãs, vizinhas… digo isso porque em todos os lugares que passei, não havia presença masculina adulta, mas uma rede de mulheres apoiando umas as outras, não apenas para encarar a realidade em nome do direito do seu filho de sonhar, mas para contestar e afrontar o medo em busca do mínimo.

Ressalto o que foi dito anteriormente para não haver dúvidas; essa não é uma história de superação. Na verdade, a única coisa que precisa ser superada aqui é essa necessidade constante de relacionar miséria e abandono com esforço pessoal e vontade, bem como tratar as pessoas deficientizadas - pedindo a licença poética à Carolina de Jesus - como despejo. 

Só que gente igual a Maria tem a resposta certa para a geração do autocuidado e dos programas de auditório. Olhando novamente para mim, na última tragada de cigarro, ela é firme e coloca as coisas no devido lugar: “Aí eu estou aqui para brigar pelos direitos dele. Seja lá o que for, vou brigar e vou batalhar. Seja lá o que for, eu vou conseguir. Quebre o resto do meu filho que você me paga! Eu já vou logo braba”.

Muito além de uma mãe machucada pela estrutura de ferro que sustenta, literalmente, seu filho, Maria, tem seu corpo todo marcado pela desigualdade, racismo e patriarcado. Para além do discurso da falta biológica das pessoas com deficiência, encontramos nas desigualdades as raízes profundas e angustiantes do abandono, as quais geram o genocídio de milhares de Marias e Joãos para continuar alimentando os consumidores e curiosos pelas tragédias humanas. 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga