No interior de um hospital de referência para a Covid-19, no Recife, a terapeuta ocupacional Poliana se prepara para entrar em contato com os pacientes internados na UTI. Ajusta a máscara, posiciona o protetor facial, veste as luvas e fecha a bata. Filma a si própria com seu celular, registrando um ritual, na época, ainda novo para ela, recém-convocada para a linha de frente de combate à doença que mudou o rumo da história. Além de todo o aparato de proteção individual, que lhe conferia algum tipo de segurança no contato com os doentes, a profissional de saúde também levava consigo um crachá com a foto de seu rosto nu e um tablet que promoveria a única forma de comunicação entre os internados e seus parentes próximos.
Poliana, uma mulher de 40 anos que recebeu a incumbência profissional de mediar as chamadas de vídeo no Hospital Agamenon Magalhães, da rede pública de saúde, é a protagonista e o fio condutor do filme Estamos te esperando em casa, longa-metragem documental dirigido pela dupla Cecília da Fonte e Marcelo Pedroso, lançado recentemente no festival Fincar e disponível com exclusividade no canal do Youtube da revista Continente até o dia 31 de janeiro (acesse no fim da matéria).
Filmado em 2020, durante o primeiro ano da pandemia e a primeira grande onda no Brasil – quando os hospitais de campanha eram montados para dar conta de um sistema de saúde colapsado por um número impensável de pacientes graves e o lockdown deixava as ruas vazias e pessoas isoladas em suas casas –, a obra é um documento histórico de um trauma coletivo que ainda segue em curso.
Além de registrar a si mesma, ora na UTI, ora na intimidade trivial de sua casa, é também Poliana que captura para o filme, sob a orientação remota dos diretores, o momento das videochamadas dos pacientes com suas pessoas queridas conduzidas dentro da unidade de terapia intensiva. É justamente no gesto de delegar a ela a missão de filmar que estão as principais singularidades – e os principais méritos – de Estamos te esperando em casa. Dar a “câmera” para Poliana, principal dispositivo do documentário, e orientá-la de longe foi, diante das condições sanitárias, a rara possibilidade de adentrar um universo reservado exclusivamente aos pacientes graves e aos cuidadores. O gesto torna possível romper os limites impostos por uma doença extremamente contagiosa e produzir imagens inéditas de um cenário permeado por mistério e solidão. O que se revela, no entanto, através dos olhos de Poliana – e do seu livre acesso às chamadas entre parentes e amigos – são momentos preciosos e íntimos de demonstração de amor e o desejo reiterado do retorno para o lar.
Que palavras merecem ser ditas quando elas podem ser as últimas? O que é importante falar quando o fim se avizinha? O que se diz para alguém que, entubado, não se sabe se vai ouvir. Estamos te esperando... se posiciona na iminência da morte e, desde esse lugar, nos apresenta a vida. No cuidado, que se explicita no banal; na emoção, que se revela em choro, riso e música; no amor, que se demonstra na espontaneidade; no desespero, que se expressa em um “me tira daqui” e no conforto que vem em um “volta logo”.
Pode-se dizer que o filme dirigido por Cecília e Marcelo é, além dos emocionantes registros dos encontros virtuais, também sobre o cotidiano dos profissionais de saúde – representado no filme pela terapeuta ocupacional. Sua higienização diária completa ao chegar em casa, seu contato restrito ao marido e aos seus gatos, suas próprias videochamadas para os pais idosos e seu reconhecimento profissional e afetivo dentro do âmbito familiar. É do rádio do carro de Poliana que escutamos as notícias alarmantes de milhões de novos casos registrados do novo coronavírus, dos milhares de mortos decorrentes da doença e do descaso do presidente que naquele momento, como até hoje, desdenhava do luto e da dor. Frente à necropolítica, o filme se constrói a partir do seu antídoto mais vital: o carinho das famílias e amigos e a dedicação de profissionais que colocam a própria vida em risco – e o fazem, dentro do sistema público de saúde, norteados pelo desejo da diminuição do sofrimento e da humanização nos processos de cuidado.
É interessante perceber, nas diversas camadas do longa-metragem, a fotografia complexa de um momento crítico. Em maio de 2020, quando se iniciaram os registros para o filme, as UTIs eram o retrato de um medo global. Os hospitais lotados eram um frame triste do Brasil. Mas é, de maneira complementar, no registro subjetivo e singular, com os ruídos e as precariedades de umas imagens que se capturam de maneira adversa, que o universal se torna particular e que as milhares de vidas contabilizadas em registros assépticos ganham cara, tom de voz e sotaque. Nas histórias de dona Raquel, Jaqueline, Eneas, Leandro e nos demais personagens se desvelam também o afeto à brasileira. Seja na espiritualidade sincrética, na paixão pelo futebol, na efusão expressiva das emoções, ou no amor pelos bichos domésticos. Nos “mainhas” e “voinhos” e na palavra saudade que insiste em se repetir. Estamos te esperando em casa é sobre a fé no adiamento das despedidas. E, a cada ligação, a reafirmação do motivo maior para se estar vivo.
Para Cecília, uma das diretoras, o filme é uma resposta amorosa à política do ódio. “É um filme que nos aproxima e nos humaniza. Aquelas pessoas que estão ali poderiam ser eu, meu pai, minha avó”, afirma. “Foi um filme que mexeu muito com a gente. Choramos muito ao longo de todo o processo acompanhando essas histórias cotidianamente, no meio do lockdown. Mas toda as vezes em que pensávamos em desistir, a gente lembrava da importância histórica de registrar esse momento”, complementa Marcelo. O filme só foi possível, explicam, por uma conjunção de fatores, dentre eles, o fato de Poliana ser irmã do diretor. As estreitas relações de confiança não só entre os realizadores e a terapeuta ocupacional, mas dela mesma com todos os personagens, entre pacientes e familiares, dão um tom espontâneo e fluido ao filme que nos permite, enquanto espectadores, mergulhar com profundidade nas sutilezas daqueles que são filmados. É dessa premissa de confiança que, sem dúvida, está o pilar dos processos de identificação empática com aquelas pessoas.
Estamos te esperando em casa faz parte dessa primeira leva de longas filmados durante o epicentro da pandemia. E, como tudo que vem sendo produzido desde então, carrega as marcas dessa nova era. É uma construção discursiva sobre o nosso presente que nos dá elementos para entender o hoje, ao mesmo tempo em que se finca como um registro documental para o futuro. Walter Benjamin, frente à tragédia das guerras mundiais, duvidava da possibilidade de narrar sobre o horror que se experienciava nas trincheiras. Esse filme, de muitas maneiras, reforça a possibilidade narrativa, apesar de tudo – da dor, do medo, do luto – e o faz na medida em que apresenta outras facetas dessa batalha. Sublinha as possibilidades do cinema, em suas experimentações estéticas apontando caminhos possíveis para lidar com a morte, na valorização das potências do cuidado.
Chico Ludermir, jornalista e mestre em Sociologia. É escritor, artista visual e educador popular.