A estrutura racista construída e conservada há séculos não se desmantelará facilmente
Na última terça (22), o candidato que venceu as últimas eleições presidenciais fez nas redes sociais a afirmação de “que Deus olhe pelas vidas inocentes das crianças colombianas, agora sujeitas a serem ceifadas com anuência do Estado no ventre de suas mães até o 6° mês de gestação, sem a menor chance de defesa” diante a decisão da Corte Constitucional da Colômbia sobre a descriminalização da interrupção da gravidez até a 24ª semana de gestação.
A hipocrisia de seu discurso contém elementos ocultos acerca de quais vidas ele lutaria até o fim para preservar. Entusiasta do armamento e do discurso de ódio a qualquer característica que seja considerada dissidente aos valores associados à moral cristã, ele representa o que tem de mais atrasado em relação à promoção de direitos sociais e cidadania.
De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no estado do Rio de Janeiro, onde se concentram as intervenções policiais no país, entre janeiro e julho de 2019, 1.075 pessoas foram assassinadas em operações policiais, número 20% superior ao mesmo período do ano anterior. A média nacional mantida em 2018 comprova que no Brasil em média 17 pessoas são mortas por dia em intervenções policiais, em que 11 de cada 100 mortes violentas intencionais foram provocadas pela polícia, e destas mais de 70% das vítimas eram negras, jovens e do sexo masculino.
Em números absolutos, de acordo com o 13º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, também no ano de 2018, 6.220 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções policiais, sendo: 99,3% das vítimas homens, 75,4% negros e 77,9% entre 15 e 29 anos de idade. O Atlas da Violência (2020) demonstrou que a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 75 são negras.
O genocídio cometido contra o povo negro, ou o genocídio antinegro, tem sido reforçado cotidianamente pelo atual governo brasileiro, tendo em vista o seu caráter neofascista, racista, colonial. Esta afirmação é óbvia tendo em vista que a sua propaganda eleitoral, assim como as medidas adotadas pelo governo reforçam uma perspectiva de exclusão no que se refere à dimensão da raça assim como quanto ao gênero e classe.
De tal forma, mais do que nunca, o genocídio antinegro está legitimado e expresso também no poder executivo, na figura de quem deveria representar a nação. Não à toa, têm sido diárias as ameaças de morte às figuras públicas de vereadoras, deputadas eleitas nas últimas eleições a partir da autoafirmação enquanto mulheres negras e/ou transexuais que em alguma medida garantem a continuidade do legado de Marielle Franco no que se refere ao enfrentamento às desigualdades estruturais nesta importante trincheira da luta institucional. Assim como à luz do dia, crianças, jovens e adultos negros têm sido assassinados neste país, sem o menor constrangimento por parte do poder público.
No entanto, o Atlas da Violência de 2019 mostrou que, entre os anos de 2007 e 2017 foram registrados 618 mil homicídios, em que 91% das vítimas são homens e 55,0% acontecem na faixa etária entre 15 e 29 anos. Assim, este e outros documentos anteriores tais como o Mapa da Violência têm comprovado o extermínio da juventude negra como a principal frente do genocídio da população negra. De acordo com a pesquisadora, advogada e professora Ana Flauzina este é um incontestável flagrante da execução da política de extermínio em massa, considerando que a juventude constitui parte vital da continuidade de existência da população negra.
O racismo está incrustado de tal maneira nas instituições brasileiras, que mesmo na recente conjuntura de governos progressistas petistas (2003-2016), a estreita ligação entre letalidade e vidas negras permaneceu sendo uma realidade, não foi uma contingência. A intencionalidade com que a polícia, as forças armadas, as milícias agem no país, assim como o não funcionamento da justiça em casos que envolvem o antagonismo entre estes sujeitos, nos permitem afirmar que a simples alteração do poder executivo não garante que a população negra no Brasil consiga ter continuidade em suas próprias vidas sem que sejam interrompidas por estar segurando um jornal à caminho do trabalho, comprando um pão, voltando da escola ou simplesmente dormindo dentro de sua própria casa.
Segundo o pesquisador João Vargas, a experiência de ser negro inclui dentre outras tantas coisas, a exclusão do que se entende por cidadania e mesmo humanidade. De tal maneira, a violência contra existências negras assim como a sua descartabilidade independente da ação destes sujeitos, não morrem pelo que estavam fazendo mas por quem são, pelos signos que carregam. Pessoas negras estão passíveis de morrer violentamente sem causa a qualquer momento, o que faz com que a legitimação desta violência gratuita seja um contínuo estado de terror para aqueles que estão sob a mira do Estado racista ou antinegro. Mortes previsíveis em sua imprevisibilidade.
Nosso desafio na luta para que as pessoas negras neste país possam dar consequência as suas próprias vidas, no sentido de planejarem, executarem seus propósitos, viverem seus sonhos e conquistas, ocuparem a história presente assim como serem sujeitos guardados na memória dos acontecimentos importantes realizados na contemporaneidade, se mostra portanto, imenso. A estrutura racista construída e conservada há séculos não se desmantelará facilmente, é fundamental o empenho de todas e todos que acreditam que a vida deve ser um direito para todo o povo. Um mundo em que a existência negra não seja interpretada enquanto crime e que a letalidade não esteja de forma tão amarga imbricada a este experienciar a vida. Interromper o genocídio praticado contra o povo negro e permitir que as histórias de vida possam se sobrepor às estatísticas de corpos interrompidos.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga