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Coluna

O direito de “ser” é permitido às mulheres com deficiência?

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Ouça o áudio:

"O julgamento de que o corpo da mulher com deficiência é assexual e não feminino cria uma espécie de 'ausência de papel'" - Agência Brasil
O amor não é permitido para mulheres com deficiência? 

[Audiodescrição: Em fotografia na esquerda aparece uma mulher na cadeira de rodas. Seu rosto não está à mostra. Ela usa uma blusa branca , tem cabelos longos pretos e uma bolsa azul está presa na aste da cadeira. À direita, aparece uma muleta cor bronze e uma pessoa usando uma calça preta. Ao fundo em turvo, pessoas com deficiência física passando. Fim da descrição.]

Estávamos eu e a amiga Natália Rosa – a qual construiu comigo esta e a próxima coluna -, mulher marchante, jornalista popular e que possui deficiência física, conversando sobre as construções históricas de atos pelo 8 de março, sem a participação ou inclusão das pautas de mulheres com deficiência.  

A conversa nos levou à conclusão de que as justificativas para esse acontecimento estão sempre pautadas no discurso do impacto que gera a presença dessas mulheres, mediante uma significação de incompletude biológica e de responsabilidades especializadas individuais, afastando, portanto, a discussão da deficiência como uma experiência coletiva,  a qual possui os mesmos alicerces das injustiças sociais que permeiam o patriarcado. 

Alargamos a discussão para o que diz respeito o “direito da mulher com deficiência de existir”, já que ao mesmo tempo em que estão dentro da categoria gênero, estão fora, pois encontram-se marcadas pela violência patriarcal, mas afastadas constantemente da concepção do feminino e de humanidade. Bell Hooks (2020) ao narrar uma breve reflexão sobre sua história de vida, afirma que duas questões lhes eram inseparáveis em seu nascimento: o fato de ela ter nascido mulher e negra, concluindo que essa “união” moldaria o seu destino para o resto da sua vida. 

Tomamos a liberdade de assumir essa mesma lógica, pois igualmente à Hooks (2020) compreendemos que a determinação sobre ser mulher e possuir deficiência são elos moldados pela retórica social da inferiorização, a qual se sustenta pelo patriarcado e o da problemática de incapacidade que se mantém firmada no capacistismo. Esses fatores, portanto, determinarão destinos. Por isso, no avançar do nosso diálogo, Natália, problematiza com a seguinte pergunta: O direito de “ser” é permitido às mulheres com deficiência? 

Pessoas que não têm deficiência sempre julgam com olhares, palavras ou ações a autonomia de pessoas com deficiência e, quando essa autonomia se revela na sexualidade, os julgamentos se tornam ainda mais explícitos. Surgem “as caras de espanto” ao se depararem, por exemplo, com uma mulher com deficiência que esteja grávida, seguido de perguntas que nunca seriam feitas em outras ocasiões: “Como você ficou grávida?” “Quem foi o monstro que fez isso com você?”. 

Há também os curiosos que organizam praticamente um questionário sobre a vida sexual dessas mulheres, tal qual essa fosse pública, uma espécie de dado desconhecido a ser estudado. A maioria dessas pessoas, se já não enxergam uma mulher com deficiência como alguém com direito à vida sexual ativa, sequer imaginam que essas mesmas mulheres podem ser lésbicas, bissexuais ou se reconhecerem enquanto pessoa trans. 

A melhor forma de proteção para que mulheres com deficiência tenham relacionamentos saudáveis é a naturalização e o engajamento coletivo necessários para construir espaços em que estas vivenciem a sua sexualidade/condição, sem que isso seja um questionamento constante, seguido de violência e que mais tarde acarreta na morte.

O julgamento de que o corpo da mulher com deficiência é assexual e não feminino cria uma espécie de "ausência de papel", uma invisibilidade social e cancelamento da feminilidade, o que leva às mulheres com deficiência a terem como uma de suas principais pautas a urgência do reconhecimento identitário feminino, o qual a cultura de dominação e repressão lhes nega.

Viver a deficiência, mediante uma sociedade que se constrói em um imaginário de funcionalidade pelo corpo construído como padrão é diretamente proporcional a ser a antítese da mulher “normal”. 

Trata-se de um duplo estigma, o qual reflete diversas formas de inferiorização. Por isso, se estamos em uma luta ampla por justiça social é necessário e urgente a centralidade dessa discussão, visto que quando “esquecemos” aquelas que estão “fora do círculo de definição dessa sociedade de aceitáveis” e tratamos tais questões como um ato individual estamos fadados a continuar repetindo tragédias.  

Agradeço à Natália Rosa pela generosa parceria nessa escrita e na vida. 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga