A erradicação da doença depende da manutenção do bom senso e da obrigatoriedade da vacina
Aquela que chegou até a ser considerada “a mais terrível das revoltas populares da República” ocorreu no Rio de Janeiro e durou quase uma semana. A imprensa da época narrou um cenário desolador, de destruição.
. Uma turba de 3.000 pessoas provocou o caos no centro do Rio.
Toda essa revolta durou de 10 a 16 de novembro de 1904. O motivo? Não foi um reajuste na tarifa do bonde, nem o repúdio a uma Copa do Mundo sediada no Brasil, muito menos indignação pela instalação de um golpe militar. Os 3.000 cidadãos e cidadãs de bem protestavam contra uma lei. E contra um homem. E contra a ciência. A revolta visava à obrigatoriedade da vacina contra a varíola, uma doença que matara 3.500 pessoas só no inverno de 1904 na cidade do Rio de Janeiro então com 800 mil habitantes.
Sim, naquele tempo já tinha fake news, então chamada de mentira mesmo. No boca a boca, sem a velocidade atual dos grupos de WhatsApp, as pessoas recebiam todo tipo de monstruosidade a respeito das consequências da vacina. Segundo os jornais, a Liga Contra Vacina Obrigatória espalhou um boato de que quem tomasse o imunizante ia ficar parecendo com um boi. Na versão de 2020, a nova liga anti-vacina espalha a mesma fake news, só trocando o boi pelo jacaré.
O saldo da revolta foi triste: 30 mortos, 110 feridos, 1.000 pessoas detidas. Revogou-se a lei, mas o inimigo nº 1 da varíola, Oswaldo Cruz, foi mantido no posto de diretor geral de saúde pública.
Em 1908 houve um novo surto, com 6.500 mortos. E então, a população que antes resistia à vacina se convenceu da necessidade da prevenção e passou a ser vacinada voluntariamente. Para o bem de todos nós, que mais de um século depois somos beneficiados com a erradicação de uma das mais mortais doenças do mundo. Quer dizer: a erradicação da doença depende da manutenção do bom senso e da obrigatoriedade da vacina. Se falhar, a doença vence de novo.
Mas eis que, no presente, enfrentamos outra pandemia: a Covid-19. São 647 mil mortos no Brasil em dois anos. E poderia ser muito mais. Outra vez, a ciência, a vacina, apareceu para nos dar uma chance de vida, reduzir os efeitos mortais da doença. E se o governo brasileiro tivesse sido minimamente competente ou responsável, o número de mortos ainda seria muito menor.
A ciência desenvolveu uma vacina em tempo recorde, as indústrias produziram grande quantidade em tempo recorde e ofereceram ao nosso governo, que contratou as compras em ritmo de lesma, sem pressa alguma. Em 17 de janeiro de 2021 começou a vacinação com pouco estoque de vacina Coronavac. Poderia ter começado a vacinação em larga escala com a Pfizer em dezembro de 2020, mas o governo não quis contratar. Por qual razão? Não se sabe.
E o governo fez mais – quer dizer, fez menos. Não investiu em campanhas de vacinação contra a Covid. O Presidente da República divulgou, ele próprio, inúmeras inverdades (eufemismo para mentiras) contra a vacina. Foi o autor da ideia de que a pessoa podia até virar jacaré, quem sabe. Que a vacina era comunista, que talvez tivesse um chip para monitorar as pessoas e controlar suas mentes. Que a vacina não adiantava de nada. Que não ia vacinar sua filha (que se saiba, a esposa e todos os filhos maiores de idade estão vacinados). Jura que não se vacinou, mas isso a gente nem pode afirmar se é mentira, visto que decretou sigilo de cem anos sobre essa informação singela.
E nem vou falar do papel de garoto-propaganda da cloroquina e da ivermectina, porque isso pode ser tema para outro artigo. No rastro desse presidente que infelizmente calhou de ocupar o Palácio do Planalto justamente quando a gente mais precisaria de um governo responsável, muitos caíram na conversa.
Tem muita gente negacionista por aí, em pleno século XXI, a Era da Informação. Pessoas que desconfiam de bula, desconfiam de livros, de cientistas, e confiam plenamente no meme que recebeu pelo WhatsApp. Gente que morreu sem ter tomado vacina. Gente que diz que prefere morrer a “perder sua liberdade”. Gente que finge ter doença para pegar atestado médico e não ser vacinada. Gente que se vacina, mas orienta os outros a não se vacinarem.
Tem os raivosos, que brigam na porta dos restaurantes em que são barrados por não terem o passaporte vacinal. Tudo isso contra a vacina. Contra algo que comprovadamente faz bem. Contra algo que preserva vidas desde o Século XVIII. O que explica o negacionismo na Era da Informação? Medo de agulha?
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga