É fundamental que possamos enfrentar conjuntamente as desigualdades sociais de gênero, raça e classe
O 08 de março é um marco histórico de internacionalização da luta das mulheres. A capacidade que as mulheres organizadas no contexto de 1917 na Rússia demonstraram ao se transformarem no estopim que incendiou a Revolução Russa constitui fato incontestável. “Pão para nossos filhos”, como uma das principais bandeiras que as quase 200 mil mulheres reivindicaram ao tomarem as ruas. Desde a segunda década do século XX esta data vem sendo celebrada de forma unitária em países do mundo inteiro. Marca uma luta de caráter combativo que inicia o calendário das lutas gerais dos movimentos sociais que lutam por justiça social.
Muitos são os exemplos de expressivas mobilizações protagonizadas pelas mulheres ao redor do mundo. As mães da praça de maio, que no período de ditadura militar argentina, estiveram cotidianamente denunciando os milhares de casos de desaparecimentos políticos de seus filhos e familiares; a importante participação das mulheres na paralisação das negociações em torno de uma Aliança do Livre Comércio das Américas – ALCA; as mães de maio do estado de São Paulo, exigindo respostas sobre a chacina de aproximadamente 400 pessoas no intervalo de 12 a 20 de maio de 2006, em sua maioria jovens negros.
A resistência das mulheres à exploração econômica, dominação colonial, ao racismo e patriarcado tem sido uma constante na história da América Latina e se reorganizou a partir do neoliberalismo e seus rebatimentos no continente. Tem se mostrado como inspirador para feministas de outras regiões do mundo assim como para os movimentos sociais gerais, no sentido de que tem demonstrado grande capacidade de radicalização em suas pautas reivindicatórias rumo às transformações sociais. Se considerarmos que “onde não há vida cotidiana, não há organização e, onde não há organização, não há política”, a ação coletiva destas “tecedoras de memória” têm enfrentado a alarmante exploração capitalista, racista e patriarcal, denunciado à política de fome e genocídio, assim como a violência policial.
A construção do feminismo popular, na última década tem representado para o movimento de mulheres a seguinte tríade: a problematização dos modelos de desenvolvimento, a renovada ênfase feminista na construção do movimento e o crescente esforço para a construção de aliança com outros movimentos sociais e vem se mostrando como alternativa de resistência à fragmentação das lutas sociais.
Na última década no contexto brasileiro ocorreram grandes mobilizações organizadas por movimentos sociais de mulheres, em que o ano de 2015 foi bastante expressivo, a exemplo da Marcha das Margaridas; Marcha das Mulheres Negras e Primavera das Mulheres ou Primavera Feminista que exigiram o “Fora Cunha” e “Não a PL 5069”. Em 2018, durante a campanha eleitoral para a presidência da república, as mobilizações em todo país nos atos “Ele não” mostraram a força e acúmulo dos movimentos de mulheres, ao colocar milhares de pessoas nas ruas denunciando o projeto violento e conservador do então representante dos setores mais atrasados da política brasileira. Em 2019, pouco antes da pandemia do coronavírus, a VI Marcha das Margaridas reuniu mais de 100 mil mulheres camponesas e urbanas em Brasília com o lema “Margaridas em luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência”.
Os últimos anos de cerceamento da democracia política, o agravamento da hierárquica divisão sexual e racial do trabalho, o fortalecimento do conservadorismo e ataque ao pensamento crítico, assim como a ausência de políticas de Estado capazes de enfrentar as desigualdades sociais no país têm apresentado inúmeros desafios à organização popular. O aprofundamento do golpe político de 2016, a partir das medidas tomadas pelo governo até o momento evidenciam o quão desfavorável está a correlação de forças para a classe trabalhadora organizada e que na correlação de forças estamos diante de setores neofascistas e profundamente reacionários. Somam-se a crescente escalada de violência policial praticada contra a população negra e o constante estado de terror para quem está sob a mira do Estado racista.
Enquanto militantes de movimentos populares, de mulheres e feministas estamos disputando com a política econômica neoliberal o tempo das mulheres entre a sobrevivência em empregos informais, os rebatimentos do desemprego, a sobrecarga da jornada com o trabalho doméstico e de cuidados e a iniciativa em organizar-se e resistir coletivamente a esta avalanche de ataques.
Assim, nos perguntamos que brechas o capitalismo racista e patriarcal desde a sua mais recente reorganização neoliberal, tem deixado abertas e como podemos incidir de modo a provocar ainda mais fraturas? Que pautas são capazes de aglutinar o maior número de trabalhadoras e quem são os nossos principais inimigos? Que estratégias feministas antirracistas e anticapitalistas coletivas podemos construir para a nossa sobrevivência enquanto organizações portadoras de desafios e sonhos coletivos? Como fermentar uma luta comum que expresse as consequências do desemprego na nossa vida cotidiana e que engendrem o mesmo enfrentamento contra os projetos que tramitam soltos pela retirada dos nossos direitos de trabalho, previdência e assistência no congresso nacional?
Considerando como uma tarefa histórica desta geração de feministas populares, nos colocamos o desafio da compreensão acerca da particularidade da formação social brasileira em que a centralidade e permanência das mulheres populares nas lutas sociais se caracterizam principalmente a partir das organizações que compõem a vida cotidiana e os territórios em que vivem e referem-se a pautas que perpassam a possibilidade real de alcançar vitórias concretas que serão usufruídas no tempo presente-cotidiano das mulheres, junto a suas famílias e comunidade. Este tipo de organização como uma das expressões do feminismo popular no contexto urbano brasileiro, carrega o tempo da utopia em um mundo justo coabitando com a urgência do que é inadiável, garantir a própria vida e de seus familiares, marcadamente territorializada e racializada.
Não existe possibilidade de transformação social profunda se as mulheres e população negra não acessam alguma mobilidade vertical em massa, enquanto grupo, neste país. É fundamental que possamos enfrentar conjuntamente as desigualdades sociais de gênero, raça e classe e exigir que o Estado cumpra seu papel de garantidor de políticas sociais, tais como o direito a uma renda básica permanente, alimentação, trabalho, saúde, educação, assim como políticas de reparação histórica, que nesta conjuntura, significam formas de sobrevivência, frente ao genocídio em forma de bala, fome e vírus.
No 08 de março deste ano estaremos mais uma vez ocupando as ruas, ao gritar “Pela Vida das Mulheres, Bolsonaro nunca mais! Por um Brasil sem machismo, sem racismo e sem Fome!” Nunca foi tão urgente exigirmos que as políticas inconclusas do frágil período democrático brasileiro e que se tornaram calamidade desde a interrupção do governo da primeira presidenta eleita em nosso país, sejam implementadas. Dezenas de coletivos populares assinam o manifesto nacional se posicionando contra a política implementada no atual governo e apontam para a possibilidade de construção de um projeto político que considere igualmente importantes as vidas da população LGBTQIA+, dos indígenas, negras e negros e do conjunto da classe trabalhadora, que devolva os direitos do povo brasileiro, eleve o patamar de suas condições de vida e incentive a organização popular.
O caminho está aberto e nós estamos nos movimentando de forma coletiva na batalha cotidiana de nos mantermos vivas. Sigamos organizadas em defesa de todas as vidas! O momento político exige a cadência de nossos passos, ritmo e coração. É fundamental contestarmos o crescimento e naturalização da violência contra as mulheres, assim como o agravamento da pobreza e o retorno avassalador do fenômeno da fome. É imprescindível que defendamos um projeto de nação construído por nós mesmas, com nossas próprias mãos e que seja capaz de expressar a diversidade do povo brasileiro como um horizonte possível no qual ninguém fique para trás. O movimento de mulheres e feministas no Brasil é um dos mais potentes do mundo. Nós não chegamos até aqui à toa, não vamos tombar nem sucumbir. Nossas vozes serão ouvidas aos quatro cantos, as ruas gritarão por justiça e nossos passos confiantes indicarão a direção a ser seguida.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga