Pernambuco

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Governo de PE toma medidas em engenho onde criança foi morta, mas desapropriação não é garantia

Conflitos no Engenho de Roncadorzinho, na Mata Sul de Pernambuco, vieram à tona com assassinato de criança de 9 anos

Brasil de Fato | Recife (PE) |
O Instituto de Terras e Reforma Agrária do Estado de Pernambuco fez um levantamento da área de produção e atualizou o cadastro das famílias - Divulgação/Fatepe

Quase um mês depois do assassinato de um criança de 9 anos no Engenho Roncadorzinho, no município de Barreiros, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, as 77 famílias que há mais de seis décadas vivem no local começam a ver uma ação do poder público. O Instituto de Terras e Reforma Agrária do Estado de Pernambuco (Iterpe), vinculado à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Agrário (SDA), fez, nessa terça (8) e quarta-feira (9), vistoria técnica e um diagnóstico sócio ocupacional e produtivo, com o levantamento da área de produção e a atualização do Cadastro Único (CadÚnico) dos posseiros. As medidas são um passo inicial e não asseguram a desapropriação da terra. 

Os trabalhadores lutam há pelo menos 20 anos pelo reconhecimento na Justiça da propriedade da terra, questão que gera conflitos agrários como o que vitimou o menino Jonatas de Oliveira dos Santos. Além de mortes, os cerca de 400 moradores, sendo 150 crianças, lidam com tentativas de expulsão, destruição de lavouras, pulverização de agrotóxicos na água e prisões indevidas. As intimidações que a comunidade vem sofrendo partiriam da empresa que hoje explora a área economicamente.

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Por conta disso, a colheita dos alimentos que os agricultores cultivam - como banana, batata, inhame, feijão, graviola e laranja - está sendo afetada, conta a presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape), Cícera Nunes. "As famílias estão quase sem produção", aponta. E é essa a fonte de renda dos trabalhadores, que vendem os insumos em feiras e associações de agroecologia. 

Movimentos populares, como a Fetape e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), já denunciavam a situação e cobravam do Governo de Pernambuco uma ação para coibir as violências há meses. A pressão aumentou no último mês, após o caso Jonatas, e as entidades, com o apoio e articulação das comissões de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), da Câmara dos Deputados - por meio do deputado federal Carlos Veras (PT/PE) - e do Senado, e do mandato do deputado estadual Doriel Barros, conseguiram uma resposta do Estado. 


População da comunidade Engenho do Roncadorzinho sofrem com agressões e violências, como a que vitimou o menino Jonatas / Brasil de Fato

No último dia 1º, o Governo do Estado formalizou a criação da Comissão Estadual de Acompanhamento dos Conflitos Agrários de Pernambuco (CEACA/PE). Em nota, a SDA informou que, a partir deste trabalho, “será produzido um Relatório Técnico que será encaminhado à CEACA/PE, à Procuradoria Geral do Estado (PGE) e ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE), para adoção das medidas administrativas e judiciais cabíveis, a fim de promover as políticas públicas agrárias às famílias agricultoras residentes e trabalhadoras naquele engenho”. 

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Por mais que representem uma conquista, o levantamento e o cadastro em si não necessariamente significam que as famílias posseiras verão a regularização fundiária, alerta Nunes. “Nós estamos lutando pela desapropriação da terra, e isso não garante a desapropriação. O que garante é o Governo do Estado articular os poderes para isso. Nesse sentido, o Iterpe é o agente principal, mas ele também pode atrapalhar. Pode acontecer de esses credores convencerem o Governo de mover os moradores para outra área”, afirma.

Segundo ela, levar as famílias para o assentamento de Flores de Ximenes, em Barreiros, vizinho ao Engenho Roncadorzinho, chegou a ser uma das opções levantadas pelo presidente do Iterpe, Henrique Queiroz, em uma das reuniões do comitê. “Já tem famílias em Roncadorzinho, com a quantidade de terra para que elas vivam. Em Ximenes não haveria as mesmas condições de estrutura”, defende.

Para Nunes, a desapropriação significaria libertação para as famílias. "A libertação social, do acesso à reforma agrária, e o desenvolvimento econômico para região, com a questão da agroecologia. Com tantas crianças morando lá, elas poderiam continuar suas escolas, ter posto de saúde”, declara.


Visita do Iterpe gerará um Relatório Técnico que será encaminhado aos órgãos que acompanham o caso / Divulgação/Fetape

Entenda o conflito

O Engenho Roncadorzinho hoje está sob administração do Poder Judiciário, mas era propriedade da Usina Santo André do Rio Una. A empresa decretou falência há mais de 20 anos, deixando, entre os credores, pelo menos mais de 40 agricultores que não tiveram seus créditos trabalhistas pagos. Permanecer no local onde nasceram e foram criadas era a única opção dessas famílias, e de outras que posteriormente chegaram de outras usinas da região que faliram. 

Só ao Governo de Estado, a Santo André deve R$ 25 milhões. “Isso de acordo com dados da PGE, sem falar o que deve à União, que esse dado a gente não tem”, revela Nunes. 

A estrutura da usina fechou e a empresa Agropecuária Javari Ltda arrendou a massa falida para produzir cana-de-açúcar, relatou o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CTP), Lenivaldo Lima. “Isso significa que, com a fábrica em funcionamento, ela paga uma renda para os credores - inclusive o erário público, que é quem tem a maior parte dos créditos”, explicou.

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O conflito explodiu em 2015, relembra Lima, quando o arrendatário solicitou reintegração de posse - pedido que foi deferido -, alegando ter direito à terra e chamando os posseiros de invasores. A área de aproximadamente 700 hectares que os agricultores ocupam, próxima ao rio, é boa para a produção agrícola, e, portanto, também visada para a cultura da cana-de-açúcar. “O pessoal resistiu e não deixou moer a cana”, relembra o advogado. Posteriormente, a Justiça modificou a decisão e anulou a reintegração de posse.

Lima reforça que os moradores não podem ser considerados invasores da terra, inclusive porque várias famílias são credoras da Santo André, e, portanto, não podem ser despejadas. “Ninguém lá é invasor. Eles são daquela terra, daquele chão. Como pode arrancar uma planta do chão? Ela morre.”

A partir de então, tiveram início as agressões diretas aos moradores, com a pulverização de veneno sobre as lavouras e fontes d’água, e pressão por parte de seguranças privados contratados pela empresa. 


Criança de 9 anos foi assassinada a tiros quando se escondia debaixo da cama com a mãe / Divulgação/ CTP PE

É neste contexto que acontece o assassinato do menino Jonatas, filho do presidente da associação dos agricultores e agricultoras do Engenho Roncadorzinho, Geovane da Silva Santos, uma das principais lideranças da comunidade.

No dia 10 de fevereiro, sete homens encapuzados e armados invadiram a casa da família por volta das 21h e efetuaram vários disparos. Geovane foi atingido por um tiro no ombro esquerdo, e Jonatas, por vários, enquanto se escondia embaixo de uma cama com a mãe. Essas mesmas vítimas já haviam sofrido ameaças e tentativas de roubo.

Direito à terra como Direitos Humanos

Há pelo menos dez conflitos agrários desse tipo na Mata Sul de Pernambuco. Frente à mobilização dos movimentos e entidades que representam os trabalhadores da terra, Lenivaldo Lima classifica que a ação do Governo Estadual se resume a tentar proteger a vida das pessoas.

“O que o Estado tem feito até hoje nos conflitos da Mata Sul é proteger as pessoas, no sentido de assegurar o aparato policial, de cadastrar no programa de Direitos Humanos, mas a incidência na estrutura para resolver o conflito fundiária é zero. Só que essa medida de proteger as pessoas no caso de Roncadorzinho foi ineficaz, tanto que cometeram um crime brutal cruel como foi”, expõe.

Por isso, o advogado cobra uma atitude mais proativa. “O Estado precisa dar um passo, sair dessa ideia de que Direitos Humanos é a defesa individualizada da pessoa ameaçada. Direitos Humanos é também direito à terra. Se o Governo Federal, que é omisso e ausente, não aposta nessa carta universal de que o Brasil é signatário - aliás, gera mais conflito no campo - e o Estadual aposta, é nessa direção que tem que ir”, defende.

Agora, os movimentos vão seguir procurando vias de negociação para a resolução do conflito, seja pela troca dos créditos em propriedade, seja com auxílio do Governo de Pernambuco, diz ele. A reportagem do Brasil de Fato Pernambuco entrou em contato com a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos para saber quando haverá a próxima reunião do CEACA/PE, e aguarda retorno.

Investigação policial

No dia 16 de fevereiro, a Polícia Civil de Pernambuco (PCPE) encaminhou à internação provisória em unidade da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) um adolescente e prendeu temporariamente dois homens suspeitos do homicídio da criança e da tentativa de homicídio do pai. De acordo com nota, outro envolvido identificado já estava no sistema carcerário, preso em 2018. Em coletiva de imprensa no último dia 17, o delegado de Homicídios de Palmares, Marcelo Queiroz, informou que dois suspeitos confessaram o crime, sendo um deles o jovem menor de idade. 

Na versão dos presos, segundo a Polícia, a motivação do crime teria sido o interesse da "organização criminosa" da qual faziam parte em comprar um pedaço de terra de Geovane para a criação de cavalos. "Eles narram no inquérito que queriam pagar um valor módico, o pai não tinha interese de vender, negou por diversas vezes, insistiram, e teriam ido lá para se vingar do pai da criança", falou o delegado, na ocasião. Queiroz acrescentou que a Polícia está percorrendo outras linhas de investigação, frisando que a questão agrária não foi descartada, e que tem um prazo de 60 dias para a conclusão do inquérito. Em 23 de fevereiro, mais um adolescente foi apreendido suspeito de envolvimento.

Edição: Vanessa Gonzaga