62% das mulheres com deficiência com menos de 50 anos experimentam violência desde os 15 anos
[Audiodescrição: Em fotografia aparecem de perfil várias mulheres com e sem deficiência sentadas em cadeiras de plástico branca, ou cadeiras de rodas, olhando para frente. Algumas estão fazendo anotações em cadernos. Ao fundo em uma faixa roxa está escrito com letras brancas: solidariedade às mulheres de apodi. Fim da descrição.]
Parafraseando o que foi dito na intervenção de Soujouner Truth - mulher abolicionista afro-americana - na Women's Rights Convention em Ohio, no ano de 1851, eu e Natália Rosa, Jornalista e mulher com deficiência física, novamente em diálogo nessa escrita, questionamos: “E a mulher com deficiência não é uma mulher?”,
A nossa sociedade tem pouco aprofundamento nos debates sobre a temática, visto que em sua estrutura funda o capacitismo, por isso, mulheres com deficiência demoram, inclusive, para se reconhecerem enquanto mulheres.
Ocorre que a junção interseccional entre gênero e capacitismo gera uma experiência de não reconhecimento, uma vez que o feminino não é algo considerado possível às mulheres com deficiência. Assim, ao mesmo tempo em que experimentam o machismo na materialização de diversas formas de violência por serem mulheres, estão tendo constantemente sua capacidade questionada para vivenciar a sexualidade.
Sobre isso, as consequências são inúmeras, pois diante de uma estrutura patriarcal ao entrar em jogo a deficiência, os limites extrapolam e a opressão faz da violência um sinônimo de cuidado. Exemplo disso é que consubstanciados neste argumento do “cuidado”, constantemente as mulheres com deficiência têm os seus direitos sexuais e reprodutivos negados.
São ideias eugênicas incutidas que vêm a calhar na esterilização, inicialmente social e posteriormente biológica, diante do argumento de que corpos com deficiência produzem outros corpos igualmente deficientes, como ainda que essas mulheres não têm condições de cuidar das suas filhas ou filhos.
Essas formas de naturalizar a violência, além de impedir que estas exerçam direitos tão inerentes à qualquer pessoa, as coloca em situação de vulnerabilidade, pois, como enfatiza novamente Natália: “se uma menina ou mulher não tem sequer informações sobre sexo, gravidez/prevenção, doenças sexualmente transmissíveis, ou sobre como identificar abuso sexual estarão sujeitas à diversas situações de opressão e violência que vão desde abusos físicos, psicológicos e sexuais, em sua maioria executado por familiares ou cuidadores, como também vivenciam relacionamentos abusivos que podem colocar em risco suas vidas”.
Constantemente essas discussões são deixadas de fora das lutas feministas, visto que não têm sido debatidas pautas acerca do apagamento da sexualidade, da depreciação dos corpos deficientes, da relação ética e política sobre o cuidado (violência x cuidado), sobre a dor dos corpos que possuem deficiência, esterilização involuntária e/ou sobre a reivindicação da identidade que a cultura nega às mulheres com deficiência, as quais são frequentemente subjugadas a partir da interpretação de outras pessoas sem deficiência.
Natália aponta que “a deficiência não é igual para todas as mulheres, algumas podem ter mais necessidade do que outras de fazer coisas básicas do dia a dia. Como jornalista e mulher com deficiência acredito que a melhor forma que temos de proteger as meninas e mulheres que vivem essa condição é debatendo o assunto, sem tabus. A informação é sempre a melhor forma de proteção. É importante garantir que elas tenham autonomia sobre si mesmas em todos os aspectos da vida, permitir que elas sejam protagonistas da própria história. Esse espaço é delas”.
A invisibilidade quando cruzada com as assimetrias de poder presentes nas relações de gênero, raça,etnia, classe, sexualidade, etc., potencializa os efeitos desse duplo estigma, contribuindo para atitudes capacitistas que transfiguram nas cadeiras, muletas, cegueira, surdez ou intelecto dessas mulheres a própria negação, como se no corpo o futuro já estivesse escrito.
Esse entendimento do corpo da mulher com deficiência sob um viés biologizante enforca as possibilidades de que sua subjetividade seja construída, tanto por si, como por intermédio de suas relações. Aparentemente existe um manual de instruções representado pelo laudo médico que cataloga esses corpos com a intenção de lhes retirar o direito de ser gente.
Eu e minha companheira já citada compreendemos juntas que boa parte da sistemática de apagamento que apontamos possui como projeto o isolamento contínuo e mortal das mulheres com deficiência. Prova disso é a constatação de que a cada hora, uma pessoa com deficiência é violentada no Brasil, sendo 80% desse número mulheres. Dados do Atlas da Violência de 2021 também comprovam que 62% das mulheres com deficiência com menos de 50 anos experimentam violência desde os 15 anos de idade, bem como que as mulheres com deficiência sofrem violência sexual três vezes mais do que aquelas que não possuem essa condição.
Por isso, já passou da hora dessa denúncia ser ponto de pauta das lutas feministas e anticapitalistas. Acreditamos que parte da justificativa de ainda não haver essa aliança está nesse projeto de separação de corpos com base na normatividade, como se fosse necessário existir uma cartilha de orientação sobre como chegar perto dessas mulheres. Entretanto, como disse Mariana Rosa – Jornalista, Educadora Popular, mulher com deficiência e mãe da Alice - em um de seus textos, ao repudiar as tais listas do “como fazer para lidar com alguém assim”; “não há forma de se relacionar que não passe pela convivência. Mergulha na convivência, acolhe a própria ignorância, respeita a diferença, se afeta e vai”.
Defendemos, portanto, que a aliança entre as mulheres que resistem para viver é potencial e necessária para que possamos romper juntas com o isolamento e pathos, rumo a construção de comunidades e resistência, afinal, como disse Soujouner Truth “Se a primeira mulher que Deus criou foi suficientemente forte para, sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de cabeça para cima”.
O reconhecimento da interconexão entre sexo, raça, classe e capacidade enfatiza a diversidade da experiência. Quando construirmos juntas um caminho ético para combater as dominações e relações assimétricas de poder, redefinindo os caminhos desiguais a uma unidade de compartilhamento, de comunhão, aprenderemos o verdadeiro significado de solidariedade, base de todo movimento feminista. Ao lutarmos juntas, experimentamos a dignidade e integridade de ser, pois é resistindo para viver e marchando para transformar que intensificamos a nossa coragem e fortalecemos o nosso comprometimento com a vida. Nenhuma de nós ficará para trás!
À companheira Natália Rosa - também autora desse texto - meu agradecimento profundo pela aliança, acolhimento e amizade que construímos nas trincheiras da vida. Por permitir que a nossas escritas e experiências se cruzassem, para que o nosso abraço ainda não realizado pudesse se transformar em resistência.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco
Edição: Vanessa Gonzaga