Na contramão do que vem sendo pautado no âmbito da Saúde Mental desde a Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001, a Prefeitura do Recife vai destinar R$ 2,4 milhões para a abertura de 150 vagas em Comunidade Terapêuticas (CTs) para pessoas com dependência ou problemas relacionados ao uso abusivo de drogas. O edital de chamamento público para Organizações da Sociedade Civil que oferecem esse serviço na Região Metropolitana foi publicado no Diário Oficial do município no último sábado (26).
Enquanto a administração pública expande a rede de CTs na capital, as Unidades de Acolhimento para adultos (UAAs), dispositivos do Sistema Único de Saúde (SUS) que prestam atendimento de acordo com os princípios da Política Nacional de Saúde Mental, são deixadas de lado. Há apenas três UAAs no Recife, cada uma com dez a quinze vagas.
A enfermeira Rita Acioli, especialista em Enfermagem Psiquiátrica e mestre em Saúde Coletiva, caracteriza a medida da prefeitura como uma decisão imprudente. “Preguiça na inteligência clínica da gestão associada ao oportunismo”, afirma.
O investimento público nas comunidades terapêuticas vem crescendo ao longo dos últimos, sendo uma marca do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). “No Brasil, elas encontraram uma forma de se expandirem através dos parlamentares neopentecostais, evangélicos e cristãos que utilizam esse espaço para se lançarem como salvadores da família, que geralmente estão aflitas e desesperadas”, contextualiza Rita. Segundo ela, é quase uma regra as CTs serem presididas ou apadrinhadas por esses parlamentares.
Por isso, o anúncio da Prefeitura do Recife não chegou como surpresa para a especialista. “É muito difícil um líder do executivo resistir ao assédio e às barganhas dos parlamentares que se nomeiam como evangélicos e cristãos e usam desses slogans para suas bases eleitorais”, comenta.
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Ela aponta que a destinação de recurso para essas organizações também cumpre o papel de ser uma “saída facil” para a gestão afirmar que fez ações e investimentos na área de cuidados a pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas. “As CTs se comprometem a fazer o que consta no edital e o prefeito fica de ‘consciência tranquila’. No entanto, se caracteriza um sucateamento do cuidado. Essas CTs brasileiras não estão preparadas sequer para serem CTs, quem dirá para serem locais que cuidam de pessoas”, condena.
Violações de direitos humanos e tratamento ineficaz: a realidade das comunidades terapêuticas
Para se entender a ameaça que o crescimento das comunidades terapêuticas associado ao sucateamento das UAs representa à política de saúde mental no Brasil, é necessário compreender como esses equipamentos funcionam.
Nas CTs, normalmente localizadas na zona rural, o indivíduo em adoecimento psíquico é isolado do contato com sua vida social durante todo o período do tratamento, que dura longos meses. “Após a conclusão do tempo de residir na CT, ele é lançado de volta ao convívio social sem nenhum suporte, bem como à sua família”, descreve Rita.
Ficar asilado nas CTs por longos períodos de tempo ao invés de manter laços com a comunidade pode ser prejudicial para o tratamento. Isso porque, de acordo com a especialista, o paciente terá dificuldades de desenvolver habilidades para lidar com sua relação com a substância. “Na comunidade terapêutica, geralmente as falas são controladas, os relatos sobre os usos de substâncias e a ‘vida no mundo ou mundana’ são evitadas ou mesmo proibidas. Então, quando sai de alta, se depara com a realidade na qual temos acesso a álcool, nicotina e outras drogas”, fala.
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Dessa forma, diz, a repetição do uso de drogas vai acontecer de uma forma sofrida, desesperada, sem suporte, carregada de sentimentos de culpa e fracasso pela recaída. “A repetição do uso é algo esperado quando se está no processo de cuidado dessa relação com a droga. Na verdade, é preciso colocar o foco na pessoa, no seu projeto de vida, e não apenas em retirar a droga da vida da pessoa”, defende.
Além disso, afastados do convívio social, os sujeitos não podem trabalhar nem estudar. “Outro absurdo é que as visitas de familiares e amigos são evitadas e controladas ao máximo. Conheci um residente de uma clínica em Vitória de Santo Antão que não pôde conhecer seu filho recém nascido que já estava com meses de vida, por proibição”, denuncia.
O asilamento de pacientes, muito comum durante o século XX, foi revisto com a promulgação da lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, conquista de uma luta de décadas dos movimentos antimanicomiais brasileiros. A legislação diz que as internações só serão permitidas se oferecerem assistência integral à pessoa com transtornos mentais, “incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros”.
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Mas a prática volta com força nas CTs, instituições que muitas vezes carregam características asilares. Rita Acioli participou de vistorias a comunidades terapêuticas em Pernambuco e presenciou incontáveis violações de direitos humanos.
“Pessoas presas, sem acesso a telefone, sem poder receber visita, uso de medicamentos intramusculares ou na veia sem prescrição médica e administrado por monitores em dependência química sem formação de enfermagem ou outra formação que autorize a fazer estes procedimentos. Além de pessoas sendo amarradas em grades de janelas para administrar medicações via garganta por funil feito com garrafa pet, enfermeiros fazendo escuta telefônica das ligações e conversas entre usuários e familiares (violando o direito à privacidade), castigos físicos, cárcere privado, sequestro através das equipes de resgate”, elenca, acrescentando ainda práticas de homofobia e racismo institucionalizado, como "cura gay".
Nesses espaços, manipulam-se as doutrinas religiosas para se justificar toda ação que gera um dano, como o uso de violência e tortura, alerta a especialista. “A lógica não é científica ou de políticas de saúde.”
E o que são Unidades de Acolhimento?
Já as Unidades de Acolhimento são um dos serviços de Atenção Residencial de Caráter Transitório estruturados pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) - robusto sistema dentro do SUS cujo objetivo é prestar atendimento à população vulnerável e com transtornos mentais. “São os dispositivos do SUS que deveriam ser implantados para essas demandas de acolhimento de caráter residencial a longo prazo (6-9 meses), semelhante à proposta residencial da comunidade terapêutica”, explica Rita.
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O modelo de tratamento das UAs, no entanto, é completamente avesso ao praticado nas CTs. O projeto terapêutico é acompanhado cotidiamente pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), é aberto à convivência em comunidade e o usuário tem a garantia de ir e vir, de trabalhar e estudar. “Faz muitos anos que não se abre uma UA no Recife. Esse é um ponto que todos evitam discutir.”
As UAs para adultos e as UAs Infanto Juvenil (UAIJ) são administradas pelos municípios, mas são custeadas por dois tipos de recursos provenientes do Ministério da Saúde: um para despesas com implantação e outro de custeio mensal. Além dos repasses do Governo Federal, estados e municípios também podem complementar parte do recurso, de acordo com a enfermeira.
Em 2021, o Ministério da Saúde investiu R$ 24.050.000 nas 69 UAAs e UAIJ de todo o País. Foram realizados 407 atendimentos nesses equipamentos em Pernambuco no ano passado, segundo dados preliminares da pasta.
O edital
O edital da Prefeitura do Recife está aberto para Comunidades Terapêuticas Acolhedoras localizadas no raio de até 150 quilômetros do Recife. A licitação vai custear cem vagas para homens a partir de 18 anos (R$ 1,62 milhão); 40 vagas para mulheres a partir de 18 anos (R$ 648 mil); e dez vagas para mães nutrizes com seus lactantes (R$ 180 mil). Ao todo, poderão ser contempladas até nove organizações.
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A iniciativa é do Programa Acolhe Vida Recife, promovido pela Secretaria Executiva de Políticas sobre Drogas (Sepod). “Enquanto estiver acolhida em Comunidade Terapêutica, é previsto, sobretudo, que a pessoa reduza a ocorrência de risco, o agravamento ou a reincidência do uso da substância psicoativa, o restabelecimento do vínculo familiar e a convivência comunitária. Além disso, deve ser construído o Plano de Atendimento Singular (PAS), que é realizado em conjunto com o usuário e sua família, com o intuito de incentivar o retorno à sociedade com as devidas condições de independência e autocuidado”, fala, em nota à imprensa, a secretária da pasta, Ana Karla Andrade.
Edição: Vanessa Gonzaga