Maria Júlia do Nascimento, ou Dona Santa, como geralmente era chamada, foi a mais conhecida rainha dos maracatus do Recife, sendo considerada a matriarca dos maracatus e terreiros da cidade, por ser também uma importante iyalorixá.
Historiadores dizem que há poucos detalhes documentais sobre a sua vida, principalmente quanto ao ano que nasceu e se era filha de africanos ou de negros brasileiros escravizados. Boa parte do que se sabe sobre ela foi criado após a sua morte, em 1962.
Quem fala mais sobre a histórias de Dona Santa é Isabel Guillen, doutora em História e professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A entrevista foi ao ar também no programa Prosa e Fato.
Confira os principais trechos:
Brasil de Fato Pernambuco: Pelo que vimos, há pouca documentação sobre a vida de Dona Santa. Como foi então que ela se tornou essa personagem tão famosa e tão importante para a cultura popular de Pernambuco?
Isabel Guillen: Ela tem uma história de vida pouco documentada em arquivos, isso é uma coisa para os historiadores. Apesar disso, ela é bastante conhecida por comunidades de negros e negras. Há muitas pessoas que em algum momento conheceram Dona Santa ou que vieram a saber dela através das histórias contadas por seus avós, parentes, vizinhos ou por pessoas que participavam das comunidades; tanto de terreiros, como da comunidade carnavalesca. Os historiadores resolvem esse problema [da falta de documentação] através da história oral, colhendo depoimentos de pessoas que conheceram Dona Santa para poder então ter uma ideia da trajetória de vida dela.
Brasil de Fato Pernambuco: Essa relação dos maracatus-nação com as religiões de matriz africana existe desde a conformação dos maracatus ou é algo que se consolida e passa a fazer mais sentido a partir da primeira metade do século XX?
Isabel Guillen: Se os maracatus estavam já associados à religião, é bem possível que sim. Não que fossem parte inerente das religiões de matriz africanas, eles são agremiações carnavalescas, atividades em grande medida de diversão, um modo estar na rua durante o Carnaval. Mas, durante os anos 30, a gente vai ter uma perseguição muito grande aos terreiros. Tanto aos terreiros de Candomblé, que a gente chamava aqui no Recife de Xangô, quanto à Jurema, que era mais conhecida naqueles anos como Catimbós. Dona Santa mesmo foi presa, se eu não me engano em 1933, há notícias de jornal, observações jocosas dos jornalistas a respeito da prisão dela.
Em seguida, a gente percebe que os maracatus e as religiões começam a ser associadas, uma quase protegendo a outra. O que leva a gente a formular a hipótese muito comum na tradição oral de que esses pais e mães de santo tinham no maracatu um pretexto para tocar para os santos. O maracatu tinha legalidade, ele podia tanto ensaiar quanto desfilar pelas ruas, e esses pais de santo então pedem essa autorização da polícia de ter maracatu para poder efetivamente fazer os seus toques.
Brasil de Fato Pernambuco: De que maneira que Dona Santa contribuiu para a valorização do maracatu na cultura pernambucana neste período de grande perseguição e de criminalização?
Isabel Guillen: Nesse período ela contribuiu pouco, porque não era muito reconhecida. Muito pelo contrário, eles fazem observações bem jocosas a respeito da Dona Santa, até porque ela é catimbozeira. Ela foi presa porque tinha um catimbó. A Dona Santa se torna um exemplo no final dos anos 30, quando alguns intelectuais começam a observar a Dona Santa como essa figura de matriarca, ela já era uma senhora de bastante idade.
O maracatu, por incrível que pareça, ao mesmo tempo que [sofria] a perseguição, havia concomitantemente uma série de intelectuais disputando uma certa identidade regional e uma certa identidade nacional. Há uma discussão muito interessante sobre frevo e maracatu como representantes de uma identidade pernambucana, que podiam muito bem competir e estar no mesmo pé de igualdade que o samba. O maracatu passa a representar em Pernambuco essa identidade negra. Dona Santa passa a aparecer em capas de revista… ela aparece em uma reportagem do Cruzeiro como esse símbolo da matriarca africana. Então é um processo de mediação cultural que vai elevando Dona Santa a símbolo dessa cultura negra no Recife.
Brasil de Fato Pernambuco: Além de ser rainha do Maracatu Elefante, o mais antigo maracatu do Recife, Dona Santa também foi presidente do maracatu durante alguns anos, algo que para as mulheres não era comum. Como foi esse período de reinado e presidência de Dona Santa frente ao Maracatu do Elefante?
Isabel Guillen: É claro que as mulheres tinham um papel na sociedade muito mais subalternizado do que hoje. Só que Dona Santa, assim como muitas mulheres de terreiro, tinha um poder, o poder mágico religioso. Ela era uma mulher de poder, porque ela era mãe de santo e tinha muitos filhos de santo. A gente tem outras mulheres que são muito poderosas nesse período. Dona Santa era uma mulher muito respeitada.
Eu acho que o Guerra-Peixe, se eu não me engano, descreve algumas situações com a Dona Santa. Ela não era só a rainha naquela posição de enfeite. Ela realmente exercia poder entre os homens, tinha domínio musical, sabia quando alguém tinha errado o batuque, sabia qual era a pessoa que tinha errado. A gente tem que entender que algumas coisas se tornam quase um mito. Dona Santa é um grande mito nessa tradição oral. Essa coisa de que mulher não tocava, porque a mulher não podia fazer certas coisas, não sei se é bem verdade, porque parece que no Elefante algumas coisas não eram bem assim, só pelo fato de, por exemplo, você ter um “rei” que era mulher.
Brasil de Fato Pernambuco: Por que você considera que é importante as pessoas conhecerem a história de Dona Santa?
Isabel Guillen: Quando se fala em termos de história, a gente conhece a história de muitos homens e mulheres brancos que são considerados heróis da história brasileira. Eu acho muito importante que a gente conheça as pessoas que são referências culturais, identitárias e religiosas para a história do Brasil e que são referências para as comunidades de negros e negras. É importante quebrar esse silenciamento em torno da história do Brasil, como se fosse uma história branca ou branqueada, embranquecida. O Brasil é um país multiétnico.
Edição: Vanessa Gonzaga