Posso afirmar que na RMR, 99,99% das igrejas evangélicas fecham as portas pra gente
No Brasil, segundo os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 86,8% dos brasileiros se declaram cristãos, entre católicos e evangélicos. Dessa quantidade, são cerca de 60 milhões de católicas e cerca 23,5 milhões de mulheres evangélicas. Isso abre um espaço para a discussão de gênero e religião.
As instituições cristãs acabam por ocupar os dois lados da mesma moeda: de um lado, representa acolhimento e vida em comunidade; mas do outro, é também um lugar de opressão para as mulheres. Então será que é possível pensar em mulheres evangélicas e feministas? O Coletivo Vozes Marias, de Pernambuco, existe para dizer que sim.
Bárbara Aguiar, integrante do coletivo, afirma que é por ser evangélica que faz sentido ser feminista. "Eu entendo o evangelho do Jesus Cristo de Nazaré, homem preto, periférico, que caminhou nas ruas sentindo as dores das mulheres; que colocou as mulheres para comer com ele à mesa, porque era um direito que não era dado às mulheres na sua época do seu ministério. Ele tratava as mulheres de forma igualitária e reconhecendo o papel que elas tinham no ministério dele", explica.
Apesar da história do cristianismo ser dominada por homens, Bárbara Aguiar relembra a importância de figuras femininas na trajetória de Jesus. Elas estavam presentes como apóstolas, discípulas, evangelizadoras e até mesmo financiadoras econômicas. "Era o caso de Maria Madalena, que as pessoas desconhecem. Então o feminismo pra gente é uma ratificação de um evangelho que traz libertação para as nossas vidas, sobretudo pra os corpos e para as vozes das mulheres", enfatiza.
"Vozes no caminho: O silêncio não é mais possível"
Em 2014, o coletivo surge na região Metropolitana do Recife como um espaço para estudo e formação para as mulheres evangélicas. É onde elas podem ter um diálogo livre e sem julgamentos sobre gênero e religião. Elas defendem o direito das mulheres exercerem sua fé, sem fechar os olhos para as violências que acontecem nos espaços religiosos.
Bárbara cita um exemplo de um caso acompanhado pelo coletivo em que mais de 20 mulheres foram vítimas de um mesmo pastor. Os motivos: assédio sexual, estupro, aborto compulsório e injúria racial. Foi pensando em casos como esse que o Vozes Marias lançou um documentário, neste mês de março, para tratar sobre a violência institucional e religiosa, o "Vozes no caminho: O silêncio não é mais possível".
O documentário é resultado da idealização de um projeto pensado pelo Vozes Marias, financiado pela CESE - Em defesa dos Direitos Humanos, e com apoio da Aliança de Batistas do Brasil, do Centro de Estudos Bíblicos, da Diaconia e da Primeira Igreja Batista em Bultrins. "A realização desse documentário é uma conquista enorme para o coletivo Vozes Marias. Ele vai mostrar a caminhada do coletivo como coletivo de mulheres evangélicas feministas que resiste dentro dos espaços religiosos", relata.
O filme conta a trajetória de duas vítimas de violência institucional religiosa, que decidem romper o silêncio e denunciar as diversas violências causadas por um pastor de uma igreja na zona norte do Recife. As sobreviventes relatam a vivência de dor e como encontraram acolhimento no Vozes Marias.
As igrejas fecham as portas para o Vozes Maria
O coletivo, no entanto, enfrenta um grande desafio: adentrar as igrejas. Ainda existe uma grande barreira e recusa das instituições em ouvi-las e manter a ponte do diálogo aberta. "Posso afirmar que na Região Metropolitana do Recife 99,99% das igrejas evangélicas fecham as portas pra gente. Atualmente, existe uma igreja em Olinda, a Primeira Igreja Batista em Bultrins, que abraça e acolhe o coletivo Vozes Marias", conta.
Foi nesta igreja que aconteceu o lançamento presencial do documentário, no dia 23 de março. Além disso, o local permite que o coletivo ofereça capacitações, rodas de diálogo, palestras, seminários, fóruns e assembleias, não só para as mulheres da instituição, mas também para mulheres e homens das comunidades próximas e para a liderança religiosa.
Para Bárbara Aguiar, esse é o modelo ideal para as demais igrejas. No entanto, ao fornecer ferramentas para que as mulheres tomem conta da sua própria realidade, elas começam a se posicionar diante da violência doméstica e a violência institucional religiosa. "Em alguma medida elas vão de encontro com esse sistema que existe dentro das igrejas judaico-cristã que é secular e que não é fácil romper", explica.
Ela entende a recusa das igrejas como uma estratégia das lideranças. "A gente não abre pra vocês porque aí a gente mantém o controle que é necessário sobre as vidas e corpos das mulheres e da igreja como um todo", afirma.
Apesar dessa dificuldade, o Vozes Marias segue em seu trabalho de formação e acolhimento, por entender que é preciso abraçar as mulheres cristãs e buscar cada vez mais um espaço seguro para que possam praticar a sua religião. Se interessou pelo coletivo e quer saber mais? Acompanha as o Instagram @vozesmarias. O documentário está disponível no canal do YouTube do coletivo.
Edição: Vanessa Gonzaga