Uma triste história capitalista atualizada e reproduzida por diferentes gerações
“Não se morre de fome, se mata de fome” é a frase repetida diversas vezes na peça do grupo de teatro Magiluth, uma releitura da obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, finalizando sua temporada em Recife no último final de semana de março. A peça, intitulada Estudo nº 1 Morte e Vida, traz um exercício de apelo à consciência da classe.
Passar horas costurando jeans vendidos a preço de banana em um fabrico que fica dentro da sua própria casa. Passar horas em cima de uma bicicleta com uma mochila térmica nas costas, levando chuva e sol, disputando o espaço da rua com carros. A propriedade de uma música pertencer a uma gravadora e não a banda que a compôs e cantou. Retratos de uma mesma história, uma triste história capitalista atualizada e reproduzida por diferentes gerações de pernambucanas/os e nordestinas/os há muitas décadas.
A peça entra para o panorama geral de denúncia continuamente promovida por movimentos sociais, filmes, romances, músicas, teses acadêmicas e jornais. A costureira do fabrico e a grande empresa compradora, o entregador e as empresas UberEats e Ifood, a banda Devotos e a sua gravadora. Cópias autênticas dos mesmos personagens: a protagonista classe trabalhadora (que vivem da venda do seu próprio trabalho em troca de um salário); a antagonista classe burguesa (aqueles que detém a propriedade sobre os meios de produção). Nesse conhecido enredo a protagonista trabalha cada vez mais e ganha uma miséria, sendo a pobreza o fim trágico ao qual ela é condenada.
É possível dizer que o antagonista quase não aparece após o surgimento de uma releitura da triste história capitalista, o empreendedorismo. Gera-se uma profunda crise de identidade na personagem. Afinal, eu sou dona do meu fabrico, sou dono da minha bicicleta, eu sou dono da minha banda. A crise de identidade continua até mesmo quando a personagem encontra o seu fim trágico de pobreza. Atualizada e repetida a história, o espetáculo não pode parar, é preciso entretenimento, risadas do público, mesmo que a protagonista esteja morta no meio do palco, seja um corpo negro morto que não suportou a exaustão de tanto trabalhar. Nos interessa: essa morte foi morrida ou matada?
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga