Pernambuco

Coluna

O padre trovão

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Tiago Thorlby nasceu na Escócia e chegou no Brasil em 1968, durante a ditadura militar - Divulgação
Foi na luta por reforma agrária e na defesa dos trabalhadores sem terra que Padre Tiago se forjou

Nesse dia 4 de abril se despediu de nós um dos mais importantes dirigentes da luta pela reforma agrária de Pernambuco, Padre Tiago Thorlby, membro da Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2.  Padre Tiago, como todos conhecíamos, foi, como diz a nota da CPT, “Uma grande referência na luta pela terra e pela libertação dos povos do campo, especialmente os que vivem na Zona da Mata de Pernambuco, com os quais lutou incansavelmente pela reforma agrária e por justiça social até os últimos dias de sua vida”.

Sempre com posição e postura firme e decisiva, sempre muito duro nas análises, nos discursos, na prática, na luta contra o latifúndio, as oligarquias políticas, o agronegócio e em relação às instituições do Estado. Foi essa dureza e firmeza que lhe rendeu o apelido de Tiago Trovão. Sempre fazia questão de demonstrar sua posição contra o Estado, em especial o poder judiciário e governos, (“Donde hay gobierno soy contra”). Deixando claro que nossa principal tarefa é de estar junto do povo, organizando, mobilizando e levando mensagens de fé. Mensagens de boas novas. 

Padre Tiago nasceu na Escócia, no continente europeu, mas foi como brasileiro que se transformou em um dos maiores lutadores da luta contra o latifúndio, sempre implacável. Os trabalhadores e trabalhadoras rurais sentiam firmeza em sua fala, o respeitavam e admiravam sua postura. 

Podemos lembrar umas das ações que mais marcou a luta pela terra no final dos anos 1990 no Brasil: a ocupação da usina Aliança na Mata Norte de Pernambuco. Na ação, os trabalhadores Sem Terra ocuparam as terras da usina e posteriormente pressionados por uma ação de despejo, como forma de protesto, ocuparam a usina e a Casa Grande.  Ao entrar na cozinha da casa grande, houve um sentimento de descontar na estrutura toda a carga histórica de escravidão na relação entre Casa grande e Senzala. 

Nesta ação, alguns trabalhadores recolheram para si algumas louças da cozinha, em especial muitos pratos, e colocaram nos sacos junto com seus pertences.  Durante a realização da assembleia, que tinha como objetivo tomar a decisão do que fazer, já que o acampamento estava cercado de polícia, Padre Tiago defendeu que não deveríamos levar nada para nossas casas dos pertences dos escravocratas, que eram responsáveis por muitas mortes, castigos nos troncos, chicotadas, e disse: “destes demônios não queremos nada, ainda ouvimos choros e gritos das senzalas”. Em seguida , todos tiraram das mochilas as peças e passaram a quebrar, jogando com muita energia, em uma vala de cimento, no centro da usina.

Padre Tiago chegou ao Brasil em 1968, em plena ditadura militar. Sua primeira parada foi em São Paulo, onde vivenciou uma intensa trajetória pastoral. No Recife chegou em 1985, onde recebeu carinhosamente o apelido já mencionado de Tiago Trovão, dado pelas famílias camponesas, por sua contundência e intensa capacidade de ação junto às comunidades. Participou de históricas lutas pela terra em Pernambuco desde a primeira ocupação dos Sem Terra pós-redemocratização  em 1986, nos engenhos Pitanga. 

Foi na luta por reforma agrária e na defesa dos trabalhadores sem terra que Padre Tiago se forjou como um bravo guerreiro. Sempre firme e implacável na condenação do latifúndio. Mas, ao mesmo tempo, com os seus, cuidadoso, preocupado e amigo.

Padre Tiago tinha tanta convicção da importância da reforma agrária que estava em sintonia com todas as lutas camponesas, seja sem terra, quilombola, indígena, era constante no espaços de debates sobre convivência com o Semiárido ou Agroecologia e ele normalmente repetia a sua posição: “Mano, (como ele sempre iniciava sua fala) tudo é muito bom, necessário, mas só vamos implementar a Agroecologia se primeiro for feito a reforma agrária. Agroecologia só com reforma agrária",

Ao mesmo tempo, Padre Tiago era uma pessoa de muita fé, pregava a boa nova de um Deus libertador, Deus dos pobres, dos oprimidos; do Deus da Igualdade, da fraternidade e da justiça social. Esta firmeza na fé é expressada na nota da CPT, informando de sua partida: “Ficamos, hoje, sem palavras para expressar a nossa desolação diante de sua partida, mas seguiremos na certeza de que ele está e estará sempre em marcha ao lado daqueles e daquelas que sonham por justiça e pela construção do Reino de Deus na Terra”.

Para nós, do MST, em um dos nossos encontros ele nos deu um recado bem irmanado na nossa causa, daqueles recados que pode se interpretar como uma dura crítica, como sempre vindo dele, mas ao mesmo tempo, com toda a sua experiência, apontando o caminho e demonstrando o quanto apostava no MST como uma organização que pode enfrentar o latifúndio e construir um projeto de Reforma Agrária Popular. Disse ele: “Os militantes do Movimento Sem Terra, naturalizaram o ato da ocupação, certamente porque vocês já, realizam muitas ocupações. Mas, cuidado, porque as famílias que participam das ocupações, para elas, é a primeira vez que participam de uma ocupação. Por isso vocês têm que manter a mística da ocupação, em todas as ocupações. Uma ocupação, ao romper a cerca do latifúndio, constrói um processo da consciência coletiva”.

Assim, ele nos ensinou que o militante deve ser um pedagogo social, ou seja, deve estar preocupado com as famílias que estão indo pela primeira vez para ocupação. Dessa forma a ocupação não pode ser uma ação fria, sem emoção, mecânica, um ato corriqueiro.  Para Tiago, o rasgar a cerca da terra é um ato revolucionário, deve ser um recomeço para cada dirigente, planejado minimamente nos seus detalhes e pedagogicamente intencionada.

Tiago Trovão nos deixou aos 79 anos, de uma vida toda dedicada ao povo de Deus e a luta pela terra de irmãos: “Nos deixa seu exemplo de incansável amor e disposição na luta por uma Terra Sem Males e na crença do Deus dos/as Pobres”. Nos deixa como herança, o seu exemplo de vida, centenas de assentamentos conquistados, como o conjunto de assentamentos Prado, na mata norte de Pernambuco e centenas de mulheres e homens preparados e preparadas para seguir sua luta. Fica com a gente a sua amada companheira, Marluce, que o acompanhou e dedicou todo o seu tempo para que, Tiago Trovão pudesse fazer a passagem com dignidade. 

Segue em paz, mano Tiago Trovão, nós vamos dar continuidade da luta por nossa causa.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga