Quem conhece Petrolina, inevitavelmente conhece Ana das Carrancas. Nascida no município de Ouricuri, Ana Leopoldina dos Santos, ou a famosa “Dama do Barro”, foi uma importante artesã ceramista para Pernambuco. A artista aprende a manusear o barro desde a infância, com a mãe. No entanto, é só na vida adulta, quando vem para Petrolina, que sua história cruza com as carrancas que marcam sua trajetória.
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Em 2006, ela recebe o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. Dois anos mais tarde, a artesã sofre um acidente vascular cerebral (AVC) e falece, não sem deixar para a região um legado cultural sem precedentes. Suas filhas hoje dão continuidade ao trabalho com o barro.
Para falar mais sobre a importância dessa figura feminina, o programa Prosa e Fato entrevista Tamires Coêlho, petrolinense e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que pesquisou sobre a vida da artista.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato Pernambuco: Qual a história de vida de Ana das Carrancas?
Tamires Coêlho: A história de Ana das Carrancas é uma história muito marcada pela migração no sertão nordestino. Era um período muito difícil. A gente está falando de uma família negra, católica, sem grande poder aquisitivo, então era uma situação bem complicada. Desde pequena ela aprendeu a reproduzir o ofício da mãe, conhecida como Maria Louceira. Isso era uma coisa muito forte dela em vida, ela sempre creditava nas entrevistas o quanto ela devia à mãe dela esse contato com o trabalho do artesanato com o barro.
A infância dela foi uma infância difícil, ela não frequentou a escola, a família dela era atravessada por muitas dificuldades, principalmente depois da morte do pai dela. Ela precisou ir trabalhar na roça para ajudar a mãe. Depois a mãe dela volta a se casar e o padastro dela tinha deficiência visual. Ela e as irmãs migram com a família pra Picos, do sertão do Piauí. Em Picos, ela se casou duas vezes e o segundo marido dela também tinha deficiência visual. É uma coisa muito interessante perceber algumas coincidências que vão acontecendo entre a história da mãe e a dela.
BdF PE: Como foi que ela deixou de ser Ana Leopoldina para ser Ana das Carrancas? Qual a sua relação com o trabalho com o barro?
Tamires: Apesar dela já ter começado a mexer com barro desde pequena, a produção do barro é muito focada quando ela vem para Petrolina. Foi o contato com o Rio São Francisco em Petrolina que trouxe essa inspiração para a produção das carrancas, porque existiam aquelas carrancas circulando na proa dos barcos e ela acabou se inspirando nessas imagens folclóricas da cultura popular. Até então, as carrancas eram feitas de madeira e ela passou a produzir em barro.
É muito interessante perceber a influência do entorno de Petrolina, da dinâmica dos barros, das atividades ribeirinhas, enfim. Essa mística que ela trazia de traços de animais, humanos… também era uma coisa que às vezes vinha em sonho. Às vezes ela sonhava com alguma coisa e tentava colocar aquilo na obra. Não tinha um molde para fazer as carrancas, as feições vinham na cabeça dela.
BdF PE: Você citou que as carrancas de Ana não tinha um molde específico, mas elas possuem uma característica bem peculiar que são os olhos furados. Por quê ela passou a produzir suas carrancas assim?
Tamires: Esse é um traço identitário muito marcante na obra dela e é uma homenagem que ela fez ao marido com deficiência visual. Ele, apesar das condições limitadas de trabalho, foi a pessoa que mais ajudou ela nesse processo de fazer as peças. E aí ele virou uma inspiração para esse traço identitário das obras dela. É interessante perceber essa questão da afetividade, do amor pelo marido que vinha nas peças. Eu tive a oportunidade de encontrar e conversar com o marido dela em vida ainda. A relação entre eles era muito forte. A forma como ele falava dela era extremamente tocante, uma relação realmente profunda.
BdF PE: Falando agora sobre a projeção que Ana das Carrancas teve, nós tivemos acesso a um artigo seu sobre a cobertura da imprensa sobre ela e gostaria que você falasse como foi o reconhecimento, por parte da imprensa, da importância de Ana das Carrancas para a cultura pernambucana.
Tamires: A gente tem aí uma questão bem complexa. É uma mulher que consegue um destaque, porque tem uma obra que começa a cair nas graças de famílias abastadas da região e nas graças dos turistas. É uma coisa diferente, e isso começa a chamar atenção da mídia. Mas ao mesmo tempo que tinha uma visibilidade, ainda era uma visibilidade restrita. Na minha pesquisa, tentei dar uma mapeada no que tinha sido produzido sobre Ana das Carrancas nos jornais impressos de Pernambuco. Eu tento rastrear o que tinha disponível de 1976 a 2010, para tentar perceber qual era a projeção dessa imagem dela. E apesar de ela ter tido uma visibilidade significativa, não quer dizer que é aquela visibilidade ideal.
Todos os turistas chegam e querem conhecer Ana das Carrancas, mas o que efetivamente está sendo feito para valorizar essa arte dela em vida? Quando ela consegue fazer o centro de artes e visibilizar a obra dela, ela já estava com uma idade avançada, já doente. A gente vê uma nostalgia muito grande na época que ela falece, mas durante a vida dela não se via efetivamente políticas para a cultura. Ela chega a alguns pontos de destaque, recebe prêmios, inclusive do cenário federal, mas em termos de incentivo de fato, não houve uma valorização tão grande quanto ela poderia ter tido em vida.
BdF PE: Por fim, Tamires, qual o legado de Ana para a cultura, não só pernambucana, mas também nacional?
Tamires: Me parece que o grande legado, para além da obra em si, é pensar como é que Ana das Carrancas se torna uma coisa muito maior do que a vida da artesã. Ana das Carrancas ainda vive. Na obra das filhas, em acervos... mas muito além da obra em si, no que ela conseguiu fazer durante a vida dela, até onde ela conseguiu levar o legado de Pernambuco. As obras dela viajaram por vários países, [ela] é uma referência de criatividade. E me parece que uma coisa que ela deixa muito claro é: a gente precisa valorizar a arte em vida. A gente precisa valorizar essas pessoas que fazem arte, não só no litoral, nas grandes metrópoles.
E se ela passou por tudo que ela passou e consegue ser uma referência ainda hoje, a gente também pode pensar "olha, vamos fazer de Ana das Carrancas, da sua memória, uma bandeira de luta pela arte”. Não só, entre aspas, 'a cultura de elite', mas sobretudo o que vai emergindo do povo. Ninguém vai lá e faz escola de belas artes para produzir aquilo. Mas tem um significado fenomenal.
Edição: Vanessa Gonzaga