No início de abril foi divulgado um estudo do Observatório das Metrópoles em que a região metropolitana do Recife aparece com rendimento médio mensal de R$831,66 per capita (por pessoa). Mas o levantamento aponta que o rendimento médio dos 40% mais pobres da RMR estão vivendo com uma renda média de apenas R$ 104 mensais per capita. Ao mesmo tempo os preços sobem em todo o país – e o Recife não fica para trás – com alta de 2,94% na inflação só entre janeiro e março, agravando a dificuldade para a compra de alimentos.
O estudo mencionado é o Boletim Desigualdade das Metrópoles, tocado pelo Observatório junto com a Pontífice Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), utilizando dados da Pnad/IBGE do último trimestre (out-nov-dez) de 2021.
A pesquisa afirma que esse rendimento médio de R$ 104 entre os 40% mais pobres faz do Recife a metrópole brasileira onde os pobres são os mais pobres. Esse rendimento mensal médio per capita entre os mais pobres era de R$ 155 em 2019 (antes da pandemia), caiu para R$ 91 em 2020 e agora é de R$ 104, valor apenas R$ 13 acima de 2020, mas ainda R$ 41 abaixo de 2019. Ainda que pequena, a recuperação da renda deve ser atribuída ao trabalho informal.
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O economista e cientista político Pedro Lapa considera que “é impossível sobreviver com isso”, indicando que a maior solidariedade nas camadas populares permite uma vida menos indigna a essas pessoas. “Recorrem a mecanismos de obtenção de renda, seja programas governamentais ou doações, além da ajuda de familiares e vizinhos”, pontua.
Ele diz que o cenário é resultado do crescimento do trabalho informal e do desemprego, ao mesmo tempo em que há uma queda da renda. “Aqui em Pernambuco 52% dos que estão trabalhando não têm carteira assinada, recebem salários bem inferiores a quem é CLT”, destaca. Lapa aponta para outros impactos resultantes desse quadro. “Como essas pessoas se deslocam na cidade, por exemplo? Então não falta só dinheiro, mas outros elementos essenciais à vida”, diz ele.
É a situação de Lindalva Silva, que mora no bairro da Guabiraba, zona norte do Recife. Ela é dona de casa e vive com mais 3 adultos - dois deles vivem de bicos e o terceiro é mecânico, trabalho informal que lhe rende menos que um salário mínimo, mas de onde provém quase a totalidade da renda da família.
Em casa própria, sem pagar aluguel, o recurso é quase todo para a alimentação. “Já faz 2 meses que não conseguimos pagar a luz, que está muito cara. É uma conta de mais de R$200 e outra de mais de R$100”, diz ela, que afirma não possuir eletrônicos que justifiquem esse valor. “Estou nervosa, com medo de a Celpe vir cortar”. O gás de cozinha ela consegue por doação de amigos.
Ela não sabe calcular e não consegue precisar a renda familiar mensal, mas sabe que fica abaixo de um salário mínimo. Um deles foi beneficiário do Bolsa Família e teve acesso ao Auxílio Emergencial durante 2020, mas perdeu o direito desde a mudança para o Auxílio Brasil. Hoje a família não recebe qualquer benefício do governo.
Observando os 50% “intermediários” na pirâmide econômica, essa população tem rendimento médio per capita de R$764 atualmente, ainda distante de um salário mínimo. Antes da pandemia a média per capita era de R$ 960 (2019) e caiu para R$726 (2020). A recuperação de 2021 em relação a 2020 foi de R$38 e, em comparação a 2019, a perda é de R$ 96.
Sobre essa camada da população, o economista considera que “não são cidadãos de classe média, mas conseguem ter um padrão de classe média baixa”. Pedro Lapa explica. “Mesmo com R$ 800 mensais a pessoa também precisa recorrer à estratégia de formar um grupo familiar para somar um valor que permita pagar aluguel, se alimentar bem e garantir que os filhos estudem”, diz ele.
São 90% de pobres
Somando os 40% mais pobres e os 50% “intermediários”, temos 90% dos moradores da região metropolitana do Recife vivendo com renda média mensal bem abaixo de um salário mínimo per capita.
Lapa considera que “temos 40% de pobres com fome e 50% de pobres remediados”, que totalizam 90% mais ou menos dependentes da proteção do Estado, “seja por políticas públicas estruturadoras, ou de políticas superficiais que visam só ampliar a popularidade do governante”. O economista conclui que “é necessário um programa de renda básica permanente”.
O economista também considera positiva a divisão econômica 40%-50%-10%, já que ela permite perceber as consequências das escolhas governamentais. “É uma tendência que não é circunstancial, fruto da pandemia ou da crise econômica. Não é. Na verdade é uma política de Estado, implementada a partir do golpe de 2016 e fruto da vontade dessa aliança política que governa o Brasil a partir de 2016 e da eleição de 2018”, diz Lapa. “É vontade do governo que a maior parte do trabalho seja informal. Não é possível que 90% da população não reconheça que vem sendo prejudicada de maneira deliberada”, provoca ele.
E os 10%?
O Boletim Desigualdades nas Metrópoles também se indica que nos 10% com mais renda (aqui estão a classe média, média alta e alta) o rendimento médio nesse grupo é de R$ 5.339 (2019), caiu para R$ 4.668 (-R$671 em 2020) e continua caindo, chegando a R$ 4.155 (-R$513 em 2021), uma perda acumulada de R$1.184.
Apesar do elogio anterior, Pedro Lapa pondera que os 10% não devem ser considerado um grupo único. “Este grupo também é subdividido. Poderíamos dividi-lo como 5%-4%-1%”, sugere ele. “O 1% mais rico não teve perda de renda – ao contrário, devem ter obtido crescimento. Nos 4% encontramos funcionários públicos de carreiras de maior remuneração, como juízes, auditores e militares, categorias com relação próxima ao poder e que acabam protegidos de perdas”, diz ele.
E de onde vem essas perdas salariais? Segundo Lapa, dos outros 5% - esta sim, a classe média, composta por concursados com faixas salariais menores e são funcionários do setor privado: muitos dos quais foram demitidos e estão desempregados; outros voltaram a trabalhar, mas em piores condições; alguns foram recontratados pela mesma empresa que os demitiu, mas agora com salários menores e menos direitos. “Muitos que compunham este grupo podem ter migrado para o grupo dos 50% intermediários”, completa Lapa.
O estudo também traz o coeficiente de Gini das metrópoles. O Gini mede a desigualdade de renda (quanto igualitário, mais próximo de zero; e quanto mais desigual, mais próximo de 1). Com coeficiente 0,669, o Recife é a segunda metrópole mais desigual do país, atrás apenas de João Pessoa (PB).
Na soma de todas as faixas de renda, a média da região metropolitana do Recife (R$831,66) é a 3ª mais baixa do Brasil, estando a frente Manaus (R$824,94) e São Luís (R$739,93). Essa média da RMR está em descendente: foi de R$1.047,42 (2019), depois houve uma queda brusca para R$ 858,11 (2020) e seguiu caindo em 2021. O maior rendimento médio do Recife se foi de R$ 1.427,94 (2013). No Brasil, a renda média nacional, entre todas as faixas de renda, foi de R$ 1.378 no fim de 2021, a mais baixa dos últimos 10 anos.
O levantamento também faz um corte para saber quantas famílias vivem com renda mensal per capita de até ¼ do salário mínimo (ou seja, famílias cuja renda, dividida entre os familiares, era de R$ 275 por pessoa ao fim de 2021). Na região metropolitana do Recife 39,8% das famílias viviam nessas condições, o 2º maior percentual de residências nessa faixa de renda, novamente ficando atrás apenas só de João Pessoa (PB). Na RMR, 48,1% das crianças vivem em lares cuja renda mensal per capita é de no máximo ¼ de salário mínimo.
O povo, os ricos e o Estado
Pedro Lapa sugere que observemos o comportamento de três grupos diante deste problema. “Os trabalhadores, seja individualmente ou organizados, lutam por educação e melhores condições de trabalho. Quando experimentaram isso, nos governos Lula e Dilma, houve uma correria para aproveitar as oportunidades, estudar e se profissionalizar”.
O segundo grupo, com interesses opostos, é o dos grandes empresários. “Qual era o discurso deles em 2014 e 2016? Apostaram na retirada de direitos. O presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) discursou que o gasto das empresas com os trabalhadores ‘precisava cair pelo menos 30%’. Havia intenção deles em cortar direitos”, lembra Lapa.
O terceiro prisma a se observar é o do poder público, o Estado. “Como o governo está mediando esse conflito?! Ele se associou aos empresários e promoveu um conjunto de reformas [trabalhista, previdenciária] que trouxe esse resultado atual. Empresários e governo se empenharam em promover este, que na minha opinião é o pior governo da história, só não é pior que o período da escravatura”, criticou o economista.
Alta dos preços
Para completar o cenário, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação, na RMR subiu 1,53% só no mês de março. Em janeiro a alta foi de 0,41%, em fevereiro os preços subiram num ritmo maior (0,97%) e seguem acelerando, como aponta o índice de março. O acumulado do trimestre é de 2,94%.
Mas na média do Brasil em março foi ainda pior: 1,62%, a maior alta mensal dos últimos 28 anos. O acumulado do trimestre nacionalmente foi de 3,2%. O acumulado dos 12 meses (de abril de 2021 até março de 2022) no país foi de 11,30%. Nessa retrospectiva do ano, Recife está pior, já que vimos os preços subirem 11,53%.
Lindalva Silva, moradora da Guabiraba, conta que no momento das compras ela se sente furtada. “Isso não é preço, é assalto”, diz ela. “As coisas já estavam muito caras, mas depois da pandemia exagerou”, resume.
O economista afirma que a inflação brasileira reflete a política cambial e monetária escolhida pelo Governo Federal, que favorece uma parcela pequena da população que tem dinheiro investido. “O Real desvalorizado e taxa de juros alta garantem ganhos para os rentistas. É o lucro da propriedade do dinheiro”, diz ele.
Mas este não é o único problema. Ele aponta que as escolhas governamentais para o setor energético – seja a energia elétrica, seja o petróleo (combustível) – também impactam no preço dos alimentos e demais itens. Ele critica o que chama de “desmantelamento” do setor hidroelétrico nacional, visando a privatização da Eletrobras. O processo, diz ele, “tornou o Brasil vulnerável ao regime de chuvas – mesmo este sendo bem conhecido e previsível”.
Sobre os combustíveis, Lapa nega que o aumento nos preços sejam resultado exclusivo da guerra entre Rússia e Ucrânia – os combustíveis no Brasil tiveram seguidos aumentos nos últimos anos, mesmo sem guerra. O economista indica que os principais motivos são a privatização e desmonte da estrutura da Petrobras, somado à “política de paridade internacional” (PPI).
“É uma ação deliberada, uma escolha do governo, que subordina a Petrobras aos interesses das petroleiras internacionais”. Lapa também considera que ainda que Lula seja eleito, levará no mínimo dois anos para que os preços do combustível e do gás voltem a condizer com a realidade da população.
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O IPCA é definido pela média de 9 grupos, dos quais 8 tiveram subida de preço na RMR, com destaque para transporte (inclui combustível) e alimentação.
Na RMR grupo transporte teve aumento de 3,82% só no mês de março (a gasolina subiu 8,9% e o diesel 17,1% no mesmo mês). O grupo de alimentação e bebidas teve alta de 2,04% – dentro deste grupo estão itens como frutas (alta de 12,4%), ovos (+9,9%), legumes e raízes (+9,8%), feijão carioca (+8,8%) e óleo de soja (+7,9%). Alguns itens alimentícios com queda foram o feijão mulatinho (-5,6%), leite líquido (-5,5%) e cortes de frango (-2,3%).
Também tiveram aumento os grupos de vestuário (+1,53%), artigos de residência (+1,46%), saúde e cuidados pessoais (+0,83%), habitação (+0,21%, apesar da queda de 3,2% no preço da energia elétrica), educação (+0,20%), despesas pessoais (+0,08%). O único item com queda de preços foi comunicação (-0,35%).
Edição: Vanessa Gonzaga