Dito isto, a conclusão é muito simples: a Língua de Sinais proporciona ao surdo libertação
[Audiodescrição: Em fotografia contra a luz e centralizada até a altura do ombro em um fundo escuro aparece uma mulher negra. Suas mãos estão a mostra e o efeito da luz ao fundo as destacam. Ela está sinalizando Libras. Usa um turbante colorido e uma blusa de manga curta azul. Fim da descrição.]
No último domingo, dia 24 de abril, foram comemorados os 20 anos da Lei 10.436/2002, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais como meio legal de comunicação e expressão. A lei foi uma conquista da Comunidade Surda, a qual em diálogo com a Senadora Benedita da Silva (PT-RJ) avança com a proposição e aprovação do projeto.
Posteriormente a essa conquista, a Comunidade Surda cava mais dois feitos extremamente significativos: o Decreto Federal 5.626/2005 que garante o uso e disseminação da Língua Brasileira de Sinais nos espaços educacionais em todos os níveis, bem como a formação de professores bilíngues inicial e continuada, somado ao Decreto Federal 12.316/2010, o qual regulamenta a profissão de tradutor intérprete de Libras.
20 anos de histórias e lutas, seguidas constantemente pelos mesmos questionamentos vindos dos sujeitos ouvintes: Libras é língua? É universal? Mímica? Linguagem de Sinais? Expressa conceitos subjetivos e abstratos? É Português Sinalizado? Estas perguntas seriam respondidas com muita facilidade se fosse superada a ótica de opressão capacitista e compreendida a Libras como língua que é.
Para o povo surdo que exerce sua relação com o mundo a partir das línguas gesto-visuais, responder a tais questionamentos é algo constante, porém ainda necessário, visto a necessidade de lutas amplas por reconhecimento, em tempos que necessitam enfrentar os entraves linguísticos que impedem a construção de uma consciência coletiva, a qual combata às injustiças sociais.
É necessário romper com a ideia equivocada de que o interesse por essa língua é algo extremamente restrito aos surdos ou profissionais que atuam na área. Conhecer o povo surdo e socializar com estes a partir da Libras mostra-nos que a nossa capacidade de linguagem, pensamento, comunicação e cultura não se desenvolvem de maneira automática e nem exclusivamente por construções biológicas, mas se organizam em origens sociais e históricas.
Há algum tempo tenho trocado os mesmos espaços com essas pessoas e, uma das leituras que mais me marcou foi indicada por uma amiga surda, a qual me dizia que para compreender a dimensão da Libras eu precisaria ler surdos. E foi no livro o vôo da Gaivota de Emmanuele Laborit – atriz e diretora de teatro francesa surda – que encontrei o que poderia unir minhas vivências a compreensão do que eu estudava a época.
Ela escreveu: “Dei um salto gigantesco para frente quando com a ajuda da Língua de Sinais entendi que ontem estava atrás de mim e amanhã à minha frente. Isso foi um enorme progresso. As pessoas ouvintes dificilmente podem imaginar como é, porque elas estão acostumadas a ter palavras e conceitos infinitamente repetidos para elas desde a infância. Elas passaram a compreendê-los sem sequer ter consciência disso. Mais tarde percebi que outras palavras se referiam às pessoas. Emmanuelle era eu. Mamãe era ela. Marie era minha irmã. Eu era Emanuelle, um indivíduo. Eu tinha um nome, portanto, eu existia” (tradução nossa).
Dito isto, a conclusão é muito simples: a Língua de Sinais proporciona ao surdo libertação. Por isso, é preciso considerar que quando as perguntas já citadas são realizadas e escancaram a falta de (re)conhecimento sobre esse povo e sua resistência, estamos solidificando fortes marcas e alicerces de intolerância, subalternização e desrespeito aos direitos humanos, mediante uma naturalização que transforma diferenças em anomalias, configurando-as como causa de todos os males sofridos.
A língua de sinais e a militância da coletividade surda, em sua imensidão, compartilhada entre os pares surdos, escolas bilíngues e, sobretudo, pela própria comunidade surda trava diariamente resistência contra as proibições e inferiorizações, entremeadas de muitas lutas pela sobrevivência da língua, qualidade da educação, espaços sociais acessíveis, etc. Não se tratando apenas do reconhecimento de que a Libras é legítima, mas da compreensão da surdez como diferença, o que acarreta em uma ampla ressignificação sobre os parâmetros impostos de capacidade opressores do modo de produção capitalista.
Essa luta, é o que Mariana Hora, surda bilíngue e Assistente Social chama de Poder Surdo e, com o poder que pode ser conferido ao seu discurso, finalizamos esse texto pedindo por respeito e aliança:
“Poder surdo não é sobre mim, não é sobre hierarquia, não é sobre superação, muito menos meritocracia. Quando a gente diz Poder Surdo, a gente evoca a Surdidade. Essa coletividade de seres humanos que constroem e vivem a sociabilidade a partir das línguas de sinais; 20 anos da Lei de Libras no Brasil é uma história que começou há 165 anos – por muitas mãos, olhares, toques e movimentos corporais – que sobrevive ao capitalismo opressor e segue fazendo história”.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga