A sua luta representa o projeto político construído dentro da favela, pelo direito à favela
Em uma lista de 190 países, elencados pela União Interparlamentar, o Brasil está em 156º no ranking mundial no que se refere à proporção de mulheres ocupando a Câmara e o Senado. Dados da ONU Mulheres indicam que a participação das mulheres vem crescendo, porém a passos lentos. Atualmente, as mulheres ocupam 24% das vagas parlamentares, 8% chefes de Estado e 6,2% chefes de governo, 20% ministros de Estado, 26% governos locais. A América Latina apresenta os maiores índices da presença das mulheres nessa esfera da política institucional, no entanto, enquanto 53% do parlamento da Bolívia é composto por mulheres e 48% no México, no Paraguai e Brasil esse índice é de apenas 15%.
De acordo com dados da Justiça Global (2020), 76% dos casos de ofensas e violência política foram registrados por parlamentares mulheres. Cresce para 78% quando racializados, em que as candidatas negras sofrem ameaças no período anterior, durante e após serem eleitas.
Ao escrever estas linhas, completam-se 1500 dias que a vereadora eleita pelo Psol, Marielle Franco foi assassinada, como expressão da pior execução política recente do país e, tornou-se símbolo mundial de resistência e luta. Por algumas razões, Marielle iniciou sua militância em cursinhos populares da favela da Maré, onde acompanhou o incentivo e ingresso de jovens às universidades como um sonho possível de ser realizado, era mãe, lutou em defesa dos direitos humanos das mulheres, população LGBTQIA+, do povo negro, enfrentou diariamente as milícias organizadas do Rio de Janeiro, estas lutas a moviam e faziam mover centenas de outras mulheres negras ao seu redor. É totalmente simbólico que a última roda de conversa que a vereadora tenha participado se chamasse “Mulheres Negras Movendo as Estruturas”, a afirmativa é tão verdadeira, que durante a sua vida-enfrentamento o seu caminho foi interpelado por grupos milicianos ligados ao sujeito que hoje destrói o país.
Marielle se tornou o emblema do que representa em um país como o Brasil, que segundo dados das Nações Unidas, a população negra compõe 70,8% dos 16,2 milhões de pessoas que vivem atualmente em situação de extrema pobreza no mundo e que 78% dos mortos em intervenção policial são pretos e pardos, segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro; o país aonde mais se assassina defensores de direitos humanos, uma vereadora negra que enfrenta os grupos responsáveis pela política em curso de genocídio do povo preto das favelas.
A sua luta representa o projeto político construído dentro da favela, pelo direito à favela, a muitas mãos e com uma profunda capacidade crítica de ampliação e efetivação de uma real democracia. Este símbolo internacional de luta cavou o espaço na política institucional, repito, a partir de um projeto popular, antirracista e coletivo e, deixou plantadas as sementes de tantas outras mulheres negras que fizeram parte de seu mandato ou foram influenciadas por ele e hoje ocupam cadeiras na câmara de vereadores ou na assembleia legislativa, em vários estados do Brasil.
Se voltarmos dois anos antes do assassinato sem responsabilização pelos mentores do crime, nos depararemos com a destituição da primeira parlamentar a ocupar a cadeira de presidência deste país. Dilma tinha uma larga trajetória política de enfrentamento à ditadura militar e experiência junto aos governos progressistas do Partido dos Trabalhadores. Foi destituída pelas brechas e inconstitucionalidades do falho e parcial sistema de justiça brasileira, a propósito a criminalização de Lula, também inconstitucional, pois que não havia resquícios de provas que o incriminassem, o deixou encarcerado por quase 2 anos.
A sumária execução da figura política de Marielle, ou ainda, o feminicídio político praticado contra ela, somado ao total silêncio por parte da justiça brasileira sobre a resolução do assassinato, o exemplo que deveria ser dado ao mundo que se virou inteiro para o caso de como deveria ser tratado esse tipo de crime, revela a seletiva forma com que de forma articulada as milícias, as elites, a justiça, quem domina econômica e politicamente esse país tratam lideranças políticas negras.
Eles tentaram tirar a figura de Marielle da cena política, da política da cidade do Rio de Janeiro, tentaram apagar a projeção que a mesma vinha ganhando a nível nacional e internacional. Ao aniquilar a possibilidade de sua existência, eles tentaram calar a sua voz, as suas ideias, os seus movimentos. Tentaram ainda apagar a sua importância histórica e o sujeito imenso e coletivo que esta liderança política representava, quem ocupava ali com ela aquela cadeira, quem com ela abria a boca e dizia “não seremos interrompidas”, como um recado para as que virão. Marielle trilhava um caminho de construção de poder popular e de enfrentamento a um criminoso e poderoso segmento da política institucional brasileira assim como a grupos paraoficiais.
Não podemos naturalizar esta recente interrupção do exercício político de uma personagem do tamanho de Marielle para a história brasileira. Nem podemos achar que esse tipo de situação acontece em qualquer país, a qualquer momento, antes revela o profundo grau de racismo, sexismo, ódio a quem é “cria da favela”, o atraso, violência e conservadorismo das elites brasileiras.
Não devemos retroceder ao afirmar que a periferia tem que estar no centro, que projetos feministas, anticapitalistas e antirracistas têm que ocupar as instituições políticas, mas isso não se faz por procuração. Como dizia Marielle e as que lhe sucederam “ou a política é feita com a gente ou não se faz política”. A ocupação de mulheres negras nestas importantes esferas de poder são capazes de desestabilizar a proporção dos dados citadas no início do texto, acerca da pobreza, mortes prematuras por letalidade policial, desenvolvimento da sociedade e cultura, investimento do fundo público destinadas às políticas sociais de Estado que façam despontar as potencialidades das favelas.
O novo só poderá surgir da superação de antigas práticas políticas e para mover a estrutura racista, sexista e socialmente desigual nos centros urbanos A vanguarda, conjunto das mulheres negras e a população negra como um todo, necessariamente precisa estar dirigindo as mais variadas organizações políticas. Concordo com a afirmação de Renata Souza, deputada estadual no Rio de Janeiro, que enquanto uma criança for morta por fuzil, não é possível descansar nesse país. E, como bem relembrou a Escola de Samba Beija-Flor, na noite de sexta-feira, “Enquanto houver racismo, não haverá democracia!”
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga